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A BELA E O PAPARAZZO - ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS (2010)

  • Foto do escritor: Antonio Roma Torres
    Antonio Roma Torres
  • 5 de jan.
  • 7 min de leitura

UM SNIPER PORTUGUÊS

António Roma Torres

 

Uma câmara fotográfica é como uma carabina de precisão. E uma fotografia também se dispara. A Bela e o Paparazzo começa com João (Marco d’Almeida) escondido atrás de uma duna e um casal que se beija numa praia deserta onde apenas os toldos perturbam a natureza. A cena poderia ser de guerra, talvez recordando o que Samuel Fuller quis explicar curiosamente num filme de Godard - “A film is like a battleground. It’s love, hate, action, violence, death. In one word: emotion.”


A violência e a perseguição são os pontos de partida do filme. Quando regressa a casa e protesta a invasão da privacidade ante o companheiro de apartamento, Hugo (Pedro Laginha), este acusa a falta de autoridade de quem ganha a vida fotografando vedetas para satisfazer a curiosidade dos leitores da imprensa cor-de-rosa.


Tiago (Nuno Markl) é o terceiro habitante e supostamente o dono do apartamento. Ociosamente deitado num sofá entretém-se vendo na televisão Vasco Santana e António Silva em O Pátio das Cantigas de Francisco Ribeiro (Ribeirinho).


A quem conheça as tentativas várias do realizador António-Pedro Vasconcelos de contribuir para uma regular produção de uma verdadeira indústria cinematográfica não escapará a citação de um período do cinema português em que sob a liderança de António Lopes Ribeiro se investia numa produção contínua com um conjunto de actores rotinados e uma vontade de encontrar um público já familiarizado com o estilo Parque Mayer. Em meia dúzia de anos Produções Lopes Ribeiro apresentaram cinco filmes, além do de Ribeirinho, dois do próprio Lopes Ribeiro (O Pai Tirano e Amor de Perdição), um de Manoel de Oliveira (Aniki Bóbó) e um de Leitão de Barros (Camões).

Mas depressa se vai perceber que ao cineasta interessa principalmente repor, se assim quisermos, a comédia como um assunto sério.


Mariana (Soraia Chaves) é a actriz que João persegue. O filme apresenta-a no cenário em que trabalha todo o dia. Perante um estado comatoso no quarto de um hospital. Ou, abrindo o plano, no estúdio onde grava uma novela. Estúdio que a dada altura a câmara percorre mostrando num travelling os ambientes das diferentes cenas. Nicolau Breyner, num pequeno grande papel, é o realizador com tiques gay que determina na régie os planos conforme a câmara que coloca em gravação, mas tem que vir à cena dirimir o conflito entre Mariana e Rogério (Nuno Homem de Sá, numa brevíssima aparição).


De forma bem interessante, mas sem quebrar as regras da linguagem cinematográfica em qualquer efeito brechtiano de distanciamento que António Pedro Vasconcelos não aprecia, o filme introduz também uma atenção ao espaço off a que o filme vai voltar de uma forma recorrente, e é coerente com o dispositivo do intruso que o paparazzo representa. E já agora com o próprio texto de Tchekov que vamos ver ter inspirado o filme (“Isto é que é um teatro. Uma cortina, primeiro bastidor, segundo bastidor, e depois o espaço vazio”).


Nicolau Breyner é o off do processo oculto de fabrico, mas mesmo assim há um espaço off, interior à própria cena que faz Mariana sair do papel quando vê mexer o dedo indicador do paciente em coma. “É um reflexo e não um movimento”, sustenta o actor supostamente orgulhoso da preparação para o papel. “Vocês estão doidos”, procura pôr ordem o realizador, o que há (o que as câmaras mostram) é um grande plano geral da actriz e um plano próximo da cara do actor. O dedo (que pode também ser o médio que Mariana mostra) não existe.


Quando noutro dia se retoma a gravação, Mariana acaba de novo por sair do papel, como que num grito, agora de liberdade. “Vocês não vêem? Estão todos cegos. Não percebem que isto não vale nada. Nada disto é real. Não há um pingo de verdade no que estamos a fazer.”


O que existe e o que não existe, o que se dá a ver e o que permanece escondido, o espaço público e o espaço privado, são pólos do diagnóstico de uma nova forma de vida que parece tendencialmente totalitária. Hannah Arendt talvez espreite por aí.

Mas a ligeireza e a montagem hábil constituem um dos trunfos do filme. Mais off que o realizador, está Gonçalo (Virgílio Castelo), que Breyner manda chamar quando tudo parece ser somente uma vedeta à beira de um ataque de nervos.  O produtor do canal é superpoderoso mesmo quando é básico e, para o final, troca mesmo alegremente (intencionalmente?) Tchekov por Tchaikovski,


O que vem depois passa-se num jantar de Mariana e Gonçalo num restaurante em média luz, ora numa distensão mal fabricada, ora entremeando pequenas provocações. Eles foram um par que alimentou as capas de revista e à saída, já na rua, o destempero de Mariana espalha pelo chão os pertences de Gonçalo, até que ela subitamente foge, no carro dele. E escondido, disparando, está João cujas fotografias rapidamente são capa na próxima revista.


Há um ponto de charneira no filme quando de manhã João já está no seu posto de observação de Mariana que compra uma revista onde na capa está a atribulada saída do restaurante na outra noite. Neste jogo de diferentes planos de observação e articulados espaços off, João enquadra Mariana e o taxista que quase lhe embatera, e subitamente um telemóvel que também enquadra a cena, e no mesmo plano de observação de João, dois miúdos que o incitam a intervir.


Jogar à bola ou a ver a bola, que curiosamente um dos miúdos traz na mão? O jogo agora é outro. João resulta agredido num súbito gesto de bravura, ou de sobrevivência do seu posto exclusivo, e a bela leva-o ao hospital numa divertida correria de diálogos entre eles, ao volante do carro que, recorde-se, é de Gonçalo, que aliás também off se intromete através do telemóvel. Suturado por um enfermeiro de caricatura, palavroso e com um gorro com desenhos infantis, João sai do hospital, com a cara num bolo e entra num conto de fadas onde as belas e os monstros podem conviver, e transformar-se. Ou talvez não, o suspense vai manter-se até ao final.


Enquanto Tiago inventa um país na independência do seu prédio e na confusa democracia do seu pátio “se os pinguins ficarem até Sábado”, Mariana e João descobrem as maravilhas que talvez não precisem sequer de uma nova constituição. É um país transformado pelo milagre em que, contra a evidência, queremos acreditar e o Rossio é o palco onde se dança uma música que talvez possamos ter cá dentro (e a música de José M. Afonso constitui uma grande contribuição).


Mas toda a bela tem um senão e o paparazzo, três vezes ferido e três vezes suturado, e uma vez encontrado na fragilidade da confissão antes apenas esboçada, é novamente um monstro que não se ousa amar.


A verdadeira interrogação do filme é sobre o que somos para lá das diferentes aparências ou opções ou caminhos por onde a vida nos leva, para citar a explicação (ou falta de explicação) que João dá para ter abandonado a fotografia mais expressiva que Mariana encontra no seu quarto.


“Eu não sou capa de revista, eu estou na capa da revista”, diz Mariana a dada altura. “Isto sou eu, agora no meu pior”, diz João a fechar o momento em que confessa ter sido Gabriela, nome de guerra do paparazzo, ainda por cima com alteração de género.

Num clima em que o fake é condenado pode haver algum refúgio no monólogo de Nina, personagem de Tchekov que Mariana sonhara representar: “eu agora estou diferente, sou uma verdadeira actriz”. “O mais importante é saber sofrer, carregar a cruz e ter fé.”


Há um aparente paradoxo que António Pedro Vasconcelos com paciência vai tentando dar a ver. Não é de um masoquismo que identifique a felicidade com o sofrimento que se trata. Mas é de uma vida que exige compromisso, mensagem austera para um aparente divertimento ligeiro. “Quando eu te conheci tudo à minha volta era ficção, mas tu sangraste e entornaste coisas em cima de mim, fizeste-me andar descalça por Lisboa e dançar”, justifica assim Mariana a mudança que João induziu nela.


Tiago, o irreverente que sabe que as histórias têm uma moral e sofre mais a decepção de amor que a pertença “aos sacrificados de uma nação que não inventámos”, tinha-lhe falado do bilhetinho deixado por uma jovem ao regressar para o antigo namorado: “desculpa, tu fizeste-me sorrir, mas ele faz-me chorar”.


A Bela e o Paparazzo está longe de ser um filme menor feito apenas para uma distração sem consequência. É até talvez a obra de António-Pedro Vasconcelos que provavelmente melhor expressa o mal-de-vivre lusíada de mais que uma geração e que o 25 de Abril não dissipou e é, aliás, um leit-motiv da sua filmografia.


O cineasta tem uma pequena figuração, como encenador de “A Gaivota”, repetindo para si o monólogo da actriz e depois pedindo a Mariana que repita a cena agora “com ela mais nervosa, com mais tensão…ela está meio perdida, gostava que me desses…esse lado da Nina.” A cada repetição tudo pode ser verdade ou mentira conforme a Mariana/Nina consiga estar lá e ter fé, e assim “nada de mal me pode acontecer”. “E quando eu penso na minha vocação, eu não tenho medo da vida.” As palavras podem ser saboreadas para que no final ainda haja esperança.


O filme de António-Pedro Vasconcelos tem um final idílico, o reencontro do casal no meio do foguetório de bairro. Em “A Gaivota”, como Regina Guimarães escreveu no programa do Teatro Nacional São João quando a peça foi levada à cena em 2014, “Tréplev abate a tiro, Nina inveja e encarna e Trigórin manda embalsamar”.


A peça é, como o filme, um exercício de tiro, mas o Tréplev impetuoso, e não silencioso na contracena com a gaivota/Nina, acaba por se suicidar. O outro escritor Trigórin, vive num tédio sem glória e se é atirador é-o apenas no sarcasmo da narrativa. “Um tema para um pequeno conto: na margem do lago vive desde criança uma jovem, assim como você; gosta do lago como uma gaivota e é feliz, e livre como uma gaivota. Mas por acaso apareceu um homem, viu-a e por não ter nada que fazer, destruíu-lhe a vida. Como a desta gaivota.”


Talvez também como Gonçalo ou como Tiago, e afinal não há tanta distinção entre as novas gerações e as mais antigas, como em Tchekov.

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