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A VIDA DOS ESPELHOS - REGINA GUIMARÃES E SAGUENAIL (2025)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • 25 de jul.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 29 de jul.

SAUDADES DE OLIVEIRA – OBRA-PRIMA A QUATRO MÃOS

António Roma Torres

 

Manoel de Oliveira, entre muitas outras originalidades do seu percurso ímpar na História do Cinema, teve a ousadia de assinar um filme póstumo.


Na realidade José Manuel Costa, engenheiro electrotécnico e director da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema de 2014 a 2024, e antes relevantíssima figura dos seus quadros onde nomeadamente foi responsável pela construção do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), dedicado à preservação do património cinematográfico português, considera “muito provavelmente um caso único na História do Cinema” a rodagem de Visita ou Memórias e Confissões em 1981 e 1982, logo depois de Francisca e que Manoel de Oliveira destinou a ser exibido depois da sua morte, embora tivesse então apenas 74 anos, de boa saúde e compleição física que o próprio filme exibe, e ainda 32 com uma longa carreira pela frente como se veio depois a verificar.


E inteligentemente, à pergunta “porquê um filme póstumo?”, título do texto de Jacques Parsi, o colaborador francês de muitos dos filmes de Oliveira, no mesmo dossier de imprensa que acompanhou o lançamento do filme no circuito comercial em França, o que aliás nem em Portugal viria alguma vez a acontecer, José Manuel Costa interroga-se sobre porque desejou Oliveira que o filme fosse público apenas após a sua morte uma vez que não revela grandes coisas inéditas, nem é especialmente autobiográfico (como acontecerá no magnífico ano 2001 de Porto Capital Europeia da Cultura, em O Porto da Minha Infância), admitindo-se que o pudor, que o levou a declarar que “talvez não o devesse ter filmado, em todo o caso está feito”, porventura possa relacionar-se com o processo de luto da sua casa-utopia da Vilarinha que teve de abandonar para pagar dívidas de uma fábrica de passamanarias que herdara do pai e fora ocupada no pos-25 de Abril, que por outro lado ironicamente lhe viria a abrir as portas de uma plena dedicação à realização de filmes, nessa época ainda por vir, numa simples sucessão de filmes de prestígio cultural, em larga medida com o apoio do estado francês na época de Jack Lang, o ministro da cultura de Mitterand de 1981 a 1986.


Visita ou Memórias e Confissões foi a oportunidade de não deixar de filmar, e renovar após Francisca um diálogo com Agustina Bessa Luís, com as vozes de Diogo Dória e Teresa Madruga, com alguns ecos da musicalidade das vozes nos diálogos entre o feminino e o masculino do cinema francês de Agnés Varda ou Margeritte Duras, apontando a uma significativa parte da sua obra futura (e em alguns filmes, como Um Filme Falado e Cristóvão Colombo – O Enigma, de alguma forma se lhe sentiu a falta desse magnífico trabalho de texto que no entanto demoraria a sua bem compreensível urgência de filmar), e de se filmar em discurso directo “a falar sobre as mulheres, a religião, as actrizes, de uma forma muito honesta e verdadeira”, como José Manuel Costa escreve, e é ao mesmo tempo, como Manoel de Oliveira dizia num cartão enviado a outro antigo director da Cinemateca Portuguesa, Luís de Pina, “parte do primeiro episódio do filme NON ou a Vanglória de Mandar”, como recorda o director da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, António Preto, num excelente texto intitulado Manoel de Oliveira Um Cinema Político?.


Aceitemos então que Visita ou Memórias e Confissões não deverá ser verdadeiramente considerado um filme póstumo, mas o cinema é pela sua própria essência sempre póstumo e essa reflexão torna-se porventura mais pertinente face a A Vida dos Espelhos, filme de Regina Guimarães e Saguenail que teve a sua primeira exibição no auditório da Casa de Cinema Manoel de Oliveira no dia 13 de Julho de 2025, e pode ser visto no espaço da exposição Luís Miguel Cintra O Pequeno Teatro do Mundo até 4 de Janeiro de 2026.


Mas o filme merece ser mais amplamente divulgado, naturalmente presente no circuito comercial pelo menos nas salas com mais capacidade de o valorizarem e uma boa ocasião seria sem dúvida uma estreia para o público em geral no dia 11 de Dezembro, do nascimento de Manoel de Oliveira, ainda neste ano de 2025 em que se celebraram com pouca visibilidade os dez anos da sua morte em 2 de Abril de 2015, e levado a Festivais de Cinema em Portugal e lá fora, e não se confinar às paredes aliás prestigiadíssimas de Serralves e da Casa do Cinema Manoel de Oliveira.


O filme é uma pequena obra-prima onde tudo parece estar no ponto certo, graças à participação de António Preto que teve a ideia e desafiou Luís Miguel Cintra ao registo de uma entrevista, longa de mais de dez horas de duração, a publicar em livro, e Regina Guimarães e Saguenail a realizarem um filme com selecção, particularmente da primeira, das imagens dos filmes de Manoel de Oliveira, quase todos em que Cintra participou, e dos sons do registo do seu depoimento, que por seu lado o segundo juntou numa montagem que combina, com rara habilidade, o rigor e a criatividade.


Mas o sortilégio do filme, e isso é inerente ao cinema de Oliveira, é encontrar a própria alma do cineasta. A escolha dos planos dirigidos por Oliveira, respeitando todavia a montagem original das sequências em que se inserem, mostra, no entanto, a força da sua composição e a importância da fotografia, de uma forma que é de certa maneira torna a direcção do próprio Oliveira presente. A Vida dos Espelhos dá vida ao que parecia estar já morto, e essa maneira de usar o material fílmico tem (e desperta) uma atenção que os documentários, mesmo de autor, raramente conseguem.


Regina Guimarães na conversa que seguiu a exibição do filme expressou “as saudades de Oliveira”, do filme dele que estreava com apreciável regularidade a cada temporada. E de certa maneira aí está o filme de Oliveira desta temporada.


Não foi a primeira vez que Regina Guimarães e Saguenail abordaram a obra de Manoel de Oliveira. Além do monumental O Nosso Caso (2001-2003), que nos seus seis livros de matizada referência bíblica abordava todo o cinema português, todavia com lugar de destaque desde o Livro I Génese e das mais icónicas imagens de filmes de Manoel de Oliveira que precedem o genérico de um “ensaio de crítica metacinematográfica sobre o cinema português do último quartel do século XX”, e surpreende o mestre divagando “até onde vai a nossa memória…é o princípio do mundo de cada um”, dez anos depois, em Sem Cura - À Saúde de Manoel de Oliveira (2011), procuram em todo o seu cinema os vários exemplos clínicos e não clínicos de uma ténue fronteira entre o corpo e a vida.


Claro que nesse tempo, de Oliveira ainda vivo, ficava aos críticos, que Regina e Saguenail também não deixam de ser, o texto dito, o ensaio que discorre às vezes de um modo enfático, em todo um percurso exterior à presença de Oliveira, no último caso já limitada ao registo da voz.


Como Manoel de Oliveira repetidamente afirmara a partir de uma citação alheia, “o cinema é o espelho da vida, não temos outro” e Regina Guimarães e Saguenail procuram nesse interminável jogo de espelhos a vida que constantemente escapa.


Em A Vida dos Espelhos (2025) a matéria que eles trabalham é já o próprio cinema nas imagens e sons e não se submetendo às regras racionalizadoras da palavra que tende a sobrepor-se. E fazem-no com uma mistura sensata de atrevimento e humildade, no sentido de darem a palavra aos outros dois “autores” da obra, o entrevistador, António Preto, cuja palavra (implícita) não se ouve, e o entrevistado, Luís Miguel Cintra, que surge como voz, confessando mesmo que na sua interpretação em muitos filmes de Oliveira a voz se impôs muitas vezes à expressão da face ou do gesto, nisso constituindo uma experiência diferente da que o tornou uma figura central do Teatro da Cornucópia.


Não haveria ninguém que incorporasse essa presença fantasmática de Manoel de Oliveira melhor do que o seu actor de tantos filmes, Luís Miguel Cintra, afastado dos palcos pela doença de Parkinson que conhecera bem no seu próprio pai, o professor e ensaísta Luís Lindley Cintra, e progressivamente lhe afecta a performance tão nuclear no seu trabalho de actor.


Peregrinando a norte e olhando o Porto do lado de Gaia onde agora vive, Luís Miguel Cintra é um co-autor que se reinventa num epílogo generoso enquanto o pano (não) cai e a Casa do Cinema Manoel de Oliveira se lhe oferece como ponto de reflexão por natureza inacabada.


Da memória e das palavras, Luís Miguel Cintra defende-se do narcisismo a que a circunstância o poderia expor não ocultando observações críticas de Oliveira ao seu trabalho, que o realizador se propunha superar na montagem, no final da rodagem de O Convento em que a própria lógica de direcção de actores, até aí bressoniana, se adaptava à invasão de vedetas do tamanho de Catherine Deneuve e John Malkovich no cinema mundial, no universo de Oliveira, do mesmo modo que Regina Guimarães e Saguenail tudo (re)compõem na sequência de O Acto da Primavera a Divina Comédia, mostrando Oliveira a dar a voz ou o corpo, como duplo, à ausência que a morte (Ruy Furtado) ou os afazeres da vida (o pregoeiro do auto popular) tinham feito desaparecer.


Por outro lado, O Meu Caso surge no contexto de A Vida dos Espelhos a uma nova luz, entre os temas existenciais de José Régio e o penoso sofrimento de Job, como um grito autobiográfico do próprio Luís Miguel Cintra, dedicado agora à publicação de arquivos memorialistas em livro (Luís Miguel Cintra O Cinema, 2020, Pequeno Livro Arquivo, 2023, Comentários a Uma Filmografia, 2025) ou em filme (Verdade e Consequência?, 2023).


Temos boas razões para ficarmos muito agradecidos à generosidade e talento de António Preto, Luís Miguel Cintra, Regina Guimarães e Saguenail que verdadeiramente fizeram a quatro mãos o filme póstumo de Manoel de Oliveira, uma obra prima.

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