ON FALLING - LAURA CARREIRA (2024)
- Antonio Roma Torres
- 8 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: 9 de abr.
FILMAR O INVISÍVEL
António Roma Torres
A primeira surpresa é não ter o título traduzido em português. Laura Carreira é portuguesa. Formou-se em cinema e vive em Edimburgo na Escócia. On Falling (2024) é a sua primeira longa-metragem, de ficção depois de três curtas, documentais em meio operário, Monday (2017), Red Hill (2018, 14 min.), prémio New Visions no Festival Internacional de Edimburgo 2019, e The Shift (2020, 9 min.), prémio Novo Talento no Indie Lisboa 2021. Em português poder-se-ia ter chamado Em Queda. A verdade é que o título é, de certa forma, o programa que a animou nesta estreia com um filme autónomo em sala, mas algo se perde na omissão da tradução.
Se o cinema em si pode ser considerado uma forma de ver, o que Laura Carreira parece querer filmar é quem não é visto, tem uma existência precária e de certa forma vive silenciosamente, em queda, no limiar da pobreza, mesmo se saiu do seu país supostamente para melhorar a vida.
A aposta de Laura Carreira é corajosa, ainda que os prémios conquistados (Concha de Prata - melhor realização – no Festival de San Sebastian e melhor primeiro filme no Festival de Cinema de Londres) testemunhem um êxito encorajador.
Em 1936, no dealbar de tempos negros para a Europa e para o mundo, Charles Chaplin fez em Tempos Modernos o que se pode considerar tardiamente “o último filme mudo” da História do Cinema – na realidade o sonoro aparecera em 1929 no início da grande depressão, americana e universal, da crise do capitalismo pouco mais de dez anos após a revolução soviética (1917) e o fim da I Guerra Mundial (1918).
Era também "o último filme do seu personagem", o Charlot Vagabundo (The Tramp) - de 1915 há precisamente cem anos, emblemático do grande período da reinvenção do cinema dos Lumière ou principalmente da criação de uma linguagem cinematográfica que o associou a David Wark Griffith no que gloriosamente se chamou Artistas Unidos/United Artists (1919) - agora identificado com o operário de uma linha de montagem na produção em cadeia do trabalho industrial, onde homem e máquina se misturam e o personagem sai alucinado e com uma bandeira vermelha inadvertidamente apanhada do chão, para sem consciência ser seguido por um conjunto de manifestantes.
Os tempos agora são outros, talvez pós-modernos, e o filme de Laura Carreira não é uma comédia, mas a urgência de dar a ver, na realidade a essência do cinema, pode considerar-se da mesma ordem.
On Falling é uma coprodução Sixteen Films (de Ken Loach e Rebecca O’Brien, após o cineasta mais reconhecido do cinema social britânico ter declarado aos 87 anos O Pub de Old Oack como seu último filme) and Bro Cinema (de Mário Patrocínio, lisboeta até agora produtor de curtas e filmes publicitários que se intitula “um curioso cidadão do mundo”), mas Laura Carreira não segue o modelo Loach de uma forma cega e esse é o seu principal mérito e também o risco que decidiu correr.
O cinema de Ken Loach revisto recentemente no Batalha Centro de Cinema - desde o quase inicial Os Dois Indomáveis/Kes (1969), na maravilhosa história de um miúdo de 14 anos que a escola marginaliza mas em segredo aprende com maestria as perícias da falcoaria, até aos mais recentes Eu, Daniel Blake (2016), acompanhando o calvário de um velho no labirinto do SNS inglês, Passámos Por Cá (2019), evidenciando o paradoxo da exploração económica dos trabalhadores levados a investirem como se empresários fossem nas viaturas em que trabalham, e portanto muito paralelo à cultura digital nas novas formas de organização laboral que também estão presentes no filme de Laura Carreira, e O Pub de Old Oak (2023), aproximando-se, pelas lentes fotográficas de uma estudante refugiada síria, da cultura popular de uma população mineira em larga medida desactivada - estrutura-se numa construção narrativa e dramática de grande qualidade em proximidade emocional com o espectador e ao mesmo tempo um rigor de análise das realidades sociais que as regras dos melodramas tradicionais costumam disfarçar.
Há no cinema de Loach uma aposta na empatia que Laura Carreira dir-se-á que quis controlar, ao contrário, por exemplo, de Listen (2020), um outro filme rodado no Reino Unido e dirigido por outra portuguesa formada em cinema em Londres, Ana Rocha de Sousa, e já agora também de título não traduzido, curiosamente mais influenciado por Micke Leigh, um outro cineasta britânico também paladino de um cinema social mas de certa maneira mais naturalista.
Em Listen há uma família portuguesa em luta com a Segurança Social, que a agride, com medidas de suposta protecção, mas na realidade desagregadoras da família. Na trama ficcional que o filme tece, Bela (Lúcia Moniz), a mãe, não procura o compromisso diplomático com a autoridade segregadora que Jota (Ruben Garcia), o marido, ensaia, e expressa em gritos e choros a sua indignação e que poderia ter sido traduzido no título por um expressivo: Ouçam.
Se Ana Rocha de Sousa domina bem a ligação emocional com o espectador, em que aliás muitas vezes o cinema português não é particularmente eficaz, já o caminho que percorreu Marco Martins, cineasta de uma outra geração e de certa maneira mais exterior ao Reino Unido, com uma ligação à realidade social da imigração portuguesa mediada através do activismo cultural e teatral, provoca uma imersão numa realidade abjecta e sufocante, também num título por traduzir em Great Yarmouth : Provisional Figures (2022) - neste caso dados provisórios mas figures pode traduzir-se também por números nas tabelas estatísticas que eliminam as variações precisamente pessoais e tomam as pessoas como números - oferecendo apenas ao espectador a esforçada performance contorcionista de Raúl (Romeu Runa), no papel de português imigrado qual peru para rechear no Natal ou algum outro martírio da carne processada que o imigrante português acaba também por ser, enquanto a aparente sobrevivência dorida de Tânia (Beatriz Batarda), antiga trabalhadora portuguesa agora tratada por "mãe" da rede que importa mão de obra desqualificada oriunda do seu país, não lhe trará talvez melhor futuro.
Laura Carreira em On Falling procura um ponto de vista diferente. A sua personagem, ironicamente chamada Aurora (Joana Santos), aparentemente não tem voz e não se vê.
O filme retrata-a no seu quotidiano repetitivo, numa linha de montagem, melhor dito seria linha de colecção, diferente forma de trabalho alienado nesta actual sociedade digital pós-industrial, onde o negócio dos serviços tende a superar a produção fabril.
Ela é uma portuguesa imigrada na Escócia onde trabalha como picker numa cadeia de distribuição logística que tem uma importância real nas sociedades digitais, nomeadamente de envios online, e é reconhecidamente desgastante.
O cinema já tinha parcialmente abordado esta nova realidade na parte final do oscarizado Nomadland (2020) da chinesa-americana Clhoé Zhao, em que a Amazon acabou talvez inocentemente colaborando, para não falar do mais óbvio precedente anterior de Ken Loach, com algum humor e até ternura sem abrir mão da habitual lucidez, em Passámos Por Cá.
Laura Carreira tinha já filmado contextos laborais alienantes nas suas curtas-metragens anteriores e grande parte de On Falling segue a extraordinária tradição do documentarismo britânico, de John Grierson (Drifters, 1929) a Harry Watt & Basil Wright (Night Mail, 1936), e, já mesmo com a aragem do free cinema, em John Schlesinger (Terminus, 1961), que sempre introduziu pequenas histórias ou alguma poesia na sua pretensão realista, nos diálogos no armazém, ou na boleia de carro, ou na cantina, mas muitas vezes também no compasso interior do tempo natural, a lembrar a Chantal Akerman de Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), citada amiúde por Laura Carreira nas entrevistas – embora não tenha filmado a sua personagem em tempo real como Chantal Akerman no quotidiano de uma mulher executando as tarefas de casa numa expressiva solidão, ela, Jeanne (Delphine Seyrig), e o endereço levados ao próprio título do filme, Laura Carreira assinala que os produtores acabaram por aceitar a sua pouco habitual decisão de filmar as cenas pela ordem em que surgem no guião.
Há duas sequências, porém, que mostram magnificamente a própria impossibilidade de mostrar, ou seja, a invisibilidade que cerca estes trabalhadores precários, cada vez mais numerosos e tentando contrariar a inevitável rota descendente das suas vidas (brilhante como metáfora visual a caixa que roda em sentido inverso na passadeira descendente em que os objectos se movimentam no armazém).
Uma primeira é uma demonstração publicitária de maquilhagem num centro comercial, e a outra, logo depois, numa entrevista a que se sujeita numa tentativa de encontrar um novo emprego.
Em ambos os casos, Aurora reage em silêncio, ou no absurdo devaneio do relato inventado de uma viagem como simulacro da colheita de dados pessoais, intoxicada pelos quase monólogos que lhe são dirigidos, aparentemente simpáticos e acolhedores, mas que não esperam dela uma verdadeira resposta.
O retrato desta incomunicação tóxica é um exercício brilhante da proposta cinematográfica que Laura Carreira mostra ter aprendido com o próprio Ken Loach, eventualmente na entrevista social a que o jovem protagonista de Os Dois Indomáveis/Kes se sujeita para emprego nas minas, após o seu medíocre percurso escolar.
Só se pode agora desejar que Laura Carreira, também ela saia da escola, mas para se lançar nos mais altos voos que sem dúvida mostra merecer.
Ao aproximar-se do final a protagonista acaba por adormecer num jardim público, e há um gesto humano de proximidade no funcionário dos jardins que a (des)cobre, como, aliás, na última cena todo o labor mecânico do armazém se suspende abruptamente por uma avaria do sistema digital dando então algum descanso ao ritmo no trabalho e surge a música que atenua os sons diegéticos da banda sonora e os embala numa espécie de hino redentor, uma canção folk irlandesa da banda Lankun, “o que faremos quando não tivermos dinheiro?”.


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