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A MULHER QUE MORREU DE PÉ - ROSA COUTINHO CABRAL (2024)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • 26 de set.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 28 de set.


EXERCÍCIO DE DESFRAGMENTAÇÃO

António Roma Torres

 

Não se fala de desfragmentação fora do campo informático. Mas a palavra pode ser usada como metáfora daquilo que Rosa Coutinho Cabral nos propõe em A Mulher que Morreu de Pé. Sendo um “ensaio cinematográfico” (como a autora o designou logo no genérico inicial) sobre Natália Correia, essa característica que decorre da vida da própria poeta (como ela a si própria se designava) não cabe nas mais comuns gavetas classificativas como documentário ou ficção.


Tempos houve pelo contrário nos anos sessenta-setenta em que a designação de “arte e ensaio” era de certa maneira institucional e aplicava-se a um circuito de exibição muitas vezes apoiado com alguns incentivos económicos e ligado a cinemas de bolso ou salas de pequena dimensão (também chamadas salas estúdio). Mais recentemente a designação cruza-se com a chamada vídeo-art e começa a habitar o espaço do museu pela mão de alguns artistas plásticos - veja-se o conjunto de entrevistas conduzidas por José Marmeleira a Pedro Lapa, João Fernandes, Julião Sarmento, Jorge Molder, Miguel Wandschneider, Miguel Amado e Sandra Vieira Jürgens em  Video Art and Essay Film in Portugal (Dinis Guarda & Nuno Figueiredo, eds.), Número – Arte e Cultura, Dez. 2008, 74 – 121).


Já se vê que ao focar a nossa atenção no ensaísmo cinematográfico estaríamos menos a considerar as condições de exibição do que aquilo que se inclui no perímetro dos géneros cinematográficos, onde por sua vez se parece aproximar do documentário.


Mas há um conceito de cinema-escrita (Camera-Stylo) que foi caracterizado em 1948 por Alexandre Astruc que deriva um pouco mais para o mundo interior do autor do que para a reportagem quiçá jornalística do exterior. Nestes cruzamentos o registo pode tornar-se poético, mas com o termo ensaio visamos mais o pensamento do que a expressão estética.


Ou como escreveu Eduardo Lourenço referindo-se à “invenção do ensaio” num texto de 1992, Montaigne ou a Vida Escrita agora publicado num livro (Gradiva, 2025) prefaciado por Guilherme de Oliveira Martins: “Consideram-se, com razão, os Ensaios um lugar escrito, ou o diário de bordo de uma aventura mais extraordinária que a de Colombo. A descoberta do Homem da sua própria América. Do desconhecido na ordem geográfica chegamos a um continente muito mais desconhecido, que é o de nós mesmos”.


Rosa Coutinho Cabral não é propriamente uma neófita no cinema português. Aos 69 anos (a mesma idade com que Natália Correia morreu de pé) apresenta a sua nona longa-metragem, depois aliás de um arranque lento: acabada a escola de cinema em 1979, conclui a sua primeira longa-metragem, Serenidade, dez anos depois, mas apenas exibida no Festival de Cinema da Figueira da Foz, e no pequeno ecrã (RTP 2) ao fim de oito anos e um ano depois de concluir Cães Sem Coleira, apenas exibido e também na RTP2 outros sete anos depois, até dois anos mais tarde, em 2006, conseguir estrear em sala Lavado em Lágrimas que teve 1328 espectadores (segundo o Memoriale Cinema Português de Jorge Leitão Ramos). A sua outra longa-metragem de ficção, Coração Negro, teve uma brevíssima apresentação em Lisboa, Leiria e Setúbal (132 espectadores segundo a mesma fonte) depois de mostrado no IndieLisboa, enquanto fizera entretanto duas longas documentais sobre a obra em Macau do arquitecto Manuel Vicente, também apenas vistas na RTP2 e no Indie Lisboa, e depois, também em Macau, Pe San Ié – O Poeta de Macau, sobre Camilo Pessanha, apresentado no Doc Lisboa, e finalmente A Casa da Rosa, filme intimista sobre a sua casa em Lisboa de onde fora despejada, também apresentada no DocLisboa.


A Mulher que Morreu de Pé teve agora sem dúvida maior visibilidade, em parte pelo centenário de Natália Correia (celebrado a 13/9/2023), também com a publicação da sua biografia O Dever de Deslumbrar (Filipa Martins, Contraponto, 2023), e a apresentação de Colheres de Prata, espectáculo teatral, encenação de Rosa Coutinho Cabral, com texto dramatúrgico em colaboração com Ângela Almeida e José Carlos Pontes, e conceito de cenografia e figurinos em colaboração com Luísa Pacheco no Teatro Micaelense em Ponta Delgada (18-03-2023) e no Teatro Baltasar Dias no Funchal (01-04-2023) e cuja reprodução vai constituir uma boa parte do filme.


Bem se compreende que o filme seja um estudo biográfico, incompleto por sua própria natureza, da poeta e da política, e muitas coisas mais, numa heteronímia a que Richard Zenith chamou “uma longa história” e se vai agora, a partir de um “conceito literário criado por Pessoa”, projectando “mais longe”, “nalguma heteronímia portuguesa que [não] terá terminado com Pessoa” (José Vieira, A Escrita do Outro, Mentiras de Realidade e Verdades de Papel, Tinta da China, 2025, p 24-25 e 31), mas também uma auto-reflexão biográfica de Rosa Coutinho Cabral, como Natália açoriana, e aí também reflectida de um filme amador super8 de Carlos Melo Bento de uma visita com Vitorino Nemésio às furnas.


Mas para além desse jogo caleidoscópico em variados espelhos que o próprio casting de actrizes (e actores) reproduz, entre a citação e a apropriação da impossibilidade de toda a Natália, que é múltipla na imagem que se reflecte nos outros que conviveram com ela ou dela conhecem os textos, a Natália ela existiu também em várias identidades/pessoas – a Natália Correia poeta, mas também a cançonetista Célia Navarro na Emissora Nacional e a locutora Natália Dias Ferreira no Rádio Club Português (cf, Luiz Fagundes Duarte, O Essencial sobre Natália Correia, Imprensa Nacional, 2024, p 14-15).


Rosa Coutinho Cabral não pretende ser didáctica ou tirar conclusões definitivas. É uma viagem também sua (ou por extensão nossa, dos espectadores) e que bem compete aos ilhéus, e há nostalgia, mas não autocomplacência, na natalidade açoriana com que a cineasta também se identifica e está bem patente em entrevista ao Fio Condutor.


Através de uma presença bem significativa no filme Fernando Dacosta faz justiça à convivialidade de Natália, característica das tertúlias em sua casa, no Botequim e de uma forma geral toda a vida em sua volta. Aliás é ele que acentua a natalidade que estava já inscrita no seu nome, mas também aquele grito dos "subalimentados do sonho" (do poema “A defesa do poeta”), aquele querer morrer (de pé) num misto de revolta e desistência, e até a volatilidade das palavras ditas, mas não escritas. É ele que confirma a profecia do início do milénio, realidade que agora se pode abater sobre nós, mas ela não chegou a viver: "As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis… Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo. (…) O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de abril, o Estado social e a independência nacional sofrerão gravíssimas ruturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e comida. A esperança média de vida cairá. Espoliada a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres" (ver a confirmação da citação Polígrafo). Foi ele que num texto paradoxalmente intitulado A Natalidade de Natália a recorda “No Choupal, sentada num banco de pedra, lançará, após dizer poemas exaltando amantes mortos, a ideia de um ciclo sobre poetas suicidados. Os grandes criadores acabam por desistir de viver. A inveja, a maldade, o cinismo, a hipocrisia que os cerca amargura-os a tal ponto que Ihes apressa a morte, lhes faz apetecer a morte. […] Um estudante grava numa árvore, ante o silêncio comovido do grupo, as palavras: "Ciclo dos poetas suicidados". O desaparecimento, pouco depois, de Natália Correia "suicidar-nos-á", por muito tempo, a todos nós.”


Há qualquer coisa de rito funéreo que encerra o filme, nesse entregar à terra misteriosamente vulcânica um corpo que não descansa em paz. E a dedicatória ao ceramista luso-alemão Andreas Stöcklein, que colaborou na peça no Teatro Micaelense e no filme e morreu a 13-07-2024 antes de o filme ver a luz do dia, parece poder ler-se no contexto das palavras que Rosa Coutinho Cabral lhe dedicara em Membrana – Transparência do Solo.


Com A Mulher que Morreu de Pé Rosa Coutinho Cabral alcança finalmente a primeira linha de um cinema português que recentemente encontrou uma forma de celebrar nomes cimeiros da sua cultura no século XX, por exemplo em Não Sou Nada de Edgar Pêra (a partir de Fernando Pessoa) ou Um Filme em Forma de Assim de João Botelho (a partir de Alexandre O'Neill).

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