VERDADES DIFÍCEIS - MIKE LEIGH (2024)
- Antonio Roma Torres
- 17 de ago.
- 4 min de leitura
Atualizado: 19 de ago.
VERDADES OU CONSEQUÊNCIA
António Roma Torres
Aos 82 anos Verdades Difíceis (Hard Truths) pode ser a derradeira obra do cineasta inglês Mike Leigh, e surpreende, como uma afirmação do cineasta de prestígio indiscutível numa cinematografia como a britânica já de si de longa tradição documental e de compromisso social, pelo tom amargo e desesperançado que pode em certo sentido ser mesmo desconfortável para o espectador.
Ao não optar por uma tradução literal do título (duras verdades) a distribuição portuguesa parece até ter pretendido atenuar-lhe a dureza.
Mike Leigh sempre evidenciou, até nos títulos – Um Dia de Cada Vez (2008), Um Ano Mais (2010) - uma caracterização sequencial do tempo, onde parece evitar grandes emoções, num tom aparentemente objectivo e desprendido, muito diferente aliás do calor militante de um Ken Loach, cineasta que de resto lhe é próximo na idade e no empenho social.
Talvez por isso Verdades Difíceis teve dificuldades de ser aceite nos festivais de cinema europeus – foi rejeitado em Cannes e Veneza quando Mike Leigh tivera a Palma de Ouro em Cannes com Segredos e Mentiras (1996) ou o Leão de Outo de Veneza com Vera Drake (2004), tendo de contentar-se agora com o festival de San Sebastian, obviamente de menos importância.
Note-se que Mike Leigh sendo uma figura do chamado cinema independente foi durante dezasseis anos o muito visível director da London Film School.
Acresce a tudo isso que Verdades Difíceis marca o regresso ao cinema de Mike Leigh da actriz Marianne Jean-Baptiste que tivera em Segredos e Mentiras uma nomeação para o oscar de interpretação secundária (o filme teve outras quatro nomeações em categorias tão importantes como melhores filme, realização, argumento e interpretação feminina principal) e fora responsável pelo clima muito empático do filme que esteve na base do seu marcado sucesso.
E a primeira surpresa do filme é precisamente a interpretação de Marianne Jean-Baptiste no papel de Pansy, agressiva, provocatória, em constante conflito com o resto do mundo, sejam profissionais de saúde ou vendedores de lojas e clientes em fila no supermercado, ou o marido ou o filho na sua esfera familiar íntima.
De início o efeito chega a ser cómico, mas a permanência do registo sem praticamente nenhum momento de ressonância interior, transgride o registo realista e deixa algum desconforto no espectador. Peter Bradshaw, o reputado crítico de cinema do The Guardian, não hesitou em declarar que “talvez a verdade mais difícil e óbvia seja que a personagem principal sofre de depressão clínica e precisa urgentemente consultar um profissional”, diagnóstico que nessa outra competência eu não confirmaria.
Creio que ao fim de mais de cem anos de experiência com o cinema o espectador adquiriu uma consciência que valoriza o sentido realista, neste caso de natureza psicológica, a menos que o director lhe dê sinais seguros de alguma intenção por detrás do que explicitamente lhe mostra, o que Mike Leigh obviamente recusa ao não carregar nos efeitos do género cómico e ao pretender com razoável clareza um retrato social.
O filme retrata um mal-estar essencial, de uma classe social a que se chama sintomaticamente trabalhadora, e à qual se recusa genericamente a dimensão do sonho mesmo quando o seu quotidiano já não é o da evidente pobreza económica. Os sinais exteriores poderiam ser de certa maneira já de alguma riqueza, no ambiente doméstico, nos automóveis e noutros modos de identificação do chamado nível de vida de uma classe média baixa, não vigorando já a evidência da funcionalização da vida toda nas cadeias de produção industrial que o cinema inicial por exemplo mostrou no magnífico Tempos Modernos de Charles Chaplin. Mas a submissão da esfera pessoal, nas relações mecanizadas que o quotidiano fornece esmagando a individualidade mesmo na esfera íntima familiar, justificaria com certeza um mais permanente e sonoro protesto de resposta à agressão de certa forma invisível, ou, talvez melhor, imperceptível. O protesto vocal aparentemente incongruente de Pansy é um equivalente do silêncio mudo do marido, contido, Curtley (David Webbeer), ou da surdez que os fones replicam nos ouvidos do filho, alheado, Moses (Tuwaine Barret).
Mike Leigh procurou construir um argumento clássico, por forma a que haja alguma aparente evolução dramática, mas não se coíbe de frustar o espectador ao não deixar espoletar toda a dor sofrida que lhe vai mostrando ao longo do filme. A narrativa do filme estabelece um contraponto com a irmã de Pansy, Chantele (Michele Austin), cabeleireira, doce e aparentemente mais feliz, e as suas duas filhas Kayla (Ani Nelson) e Aleisha (Sophya Brown), num percurso social talvez ascendente, mas que não lhes evita alguma humilhação nos novos contextos de trabalho.
O final é uma reunião das famílias das duas irmãs numa comemoração, ainda contida, pelo quinto aniversário da morte da mãe, em que todas as aproximações emocionais parecem frustradas, onde de passagem as irmãs negoceiam algum ciúme na relação triangular havida com a mãe, e que ajudam a compreender algumas mágoas da irmã mais velha que podem explicar a irritação constante patenteada antes.
A narrativa prolonga-se num epílogo que não se destina a sossegar as consciências dos espectadores já que a incomunicabilidade do casal se mantém mesmo na situação de um acidente no trabalho do marido e onde aparentemente não há saídas para todo o mal-estar patenteado, salvo uma imagem de aproximação de olhares de Moses com uma jovem desconhecida na multidão anónima e multicultural que circunda a icónica imagem londrina de Piccadily Circus no centro londrino.
O espectador pode ser levado a alguma angústia desconfortável ao sair da sala notando-se que as regras do espectáculo não apagaram a consciência social da geração de cineastas que precedeu Mike Leigh como Ken Loach e que significativamente foi chamada na transição dos anos 1950-60 de angry young men num movimento cultural que se estendeu à literatura e ao teatro. Não pretendiam mais que, como dizia o título da peça de John Osborne (1956), look back in anger.
A raiva não se disfarça no efeito fácil de empatia ou num discurso auto complacente. A verdade é dura. Não está imediatamente comprometida numa causa. Simplesmente mostra uma realidade que existe. E é difícil de suportar.
Talvez o filme prefira ser mais reflexivo que militante, mas mesmo assim o site Sp!ked que veio suceder ao anterior Living Marxism não hesita em interrogar-se se não será Mike Leigh o último grande cineasta de esquerda.
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