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MISERICÓRDIA - EMMA DANTE (2023)

  • Foto do escritor: Antonio Roma Torres
    Antonio Roma Torres
  • 21 de ago.
  • 3 min de leitura


UMA ESTÉTICA DO FEIO

António Roma Torres

 

Misericórdia, terceira longa-metragem da siciliana Emma Dante apresenta-se desde logo como uma aposta arriscada. Parece evidente a memória indelével do neo-realismo na cinematografia italiana que lhe dá de certa maneira uma caução cultural, mas o visual abjecto quadra-se com dificuldade numa variação policromática que hoje praticamente todo o cinema pressupõe.


Fazendo jus ao inteligente título e olhando com compaixão toda a miséria, há evidentemente um acento político para além da provocação ou da dor. Parece ser um Feios, Porcos e Maus, produto tardio de um Ettore Scola, parceiro crescido na área do argumento, com menos comédia ou melodrama.


Curiosamente o filme só progressivamente desenrola uma narrativa que vai além da sua inicial forma documental, onde há encenação mas quase se esconde a ficção, apesar de ter sido testado no palco, na sua origem teatral, onde Emma Dante tem obra feita, numa certa abstração coreográfica, que aliás algum público português conhece de apresentações no Centro Cultural de Belém e no Teatro Nacional São João ou participações no Festival de Teatro de Almada.


O filme retrata uma comunidade de mulheres, prostitutas, vivendo em barracas, numa praia suja e degradada, aparentemente controladas por um poder masculino, identificado num zarolho Polifemo (Fabrizio Ferracane).


No seu seio nasce um bebé, que as cenas iniciais mostram nu, num longo choro na rocha.


Acontece que o menino, Arturo (Simone Zambelli), vai crescer com um atraso mental, correndo meio perdido, semi-nu, já praticamente adulto, com crianças mais pequenas, à sua volta, rindo e cantando.


Esse aparente descuidado não oculta a atenção de duas irmãs da mãe, morta por agressão aquando do parto, Betta (Simona Malato) e Nuccia (Tiziana Cuticchio), a que se vem juntar uma nova colega, Anna (Milena Catalano), que expressa como uma genuína disposição de maternidade.


Alguma crítica notou a expressão de um feminismo atávico, quiçá furioso, pontuado até por um manifesto violento com que Emma Dante reagiu a um estupro que foi notícia em Palermo em Julho de 2023, mas há um lado de esperança, ou de natalidade no conceito de Hannah Arendt, que acaba por ter mais força no filme.


Mesmo nos meios mais desprovidos, sociais ou com deficiência inclusive física, o ser humano tem recursos para a sua própria protecção, não que tornem menos úteis a acção de estruturas do estado ou de solidariedade social de que se espera alguma intervenção eventualmente supletiva, mas que não devem dispensar o que a própria natureza humana é capaz de prover mesmo na maior pobreza, bem expressa numa bela cena do filme de grande significado, num bailado de fios que ligam Arturo e Anna no cenário degradado de uma casa em ruínas. Esses fios parecem ser o objecto metafórico que Arturo tinha já descoberto antes, como expressão dessa relação que o ser humano mesmo pouco dotado é capaz de estabelecer.


De forma semelhante sensivelmente a meio do filme há uma sequência de planos fixos com uma composição mais cuidada, como se de pinturas se tratasse. De certa maneira é este realismo não-real, esta poesia do a-poético, que Emma Dante parece perseguir, num cinema que parece ainda não ter encontrado a sua linguagem própria.


Talvez haja no seu cinema uma indecisão entre a tela e o palco, expressa em algumas das suas entrevistas entre o teatro e o cinema, sendo que no segundo, que na realidade é na forma de expressão da autora o primeiro, há ainda provavelmente uma dicotomia não resolvida entre o dramático e a coreografia.


Uma legenda final indica que Emma Dante dedica o filme ao filho adoptivo, Dimitri, como uma mensagem enviada ao futuro, e curiosamente através de um filho homem e uma maternidade de adopção, como se isso pudesse resgatar uma sexualidade ligada à brutalidade e é talvez também de valorizar a recensão favorável do jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano.


As insuficiências ou hesitações bem à vista em Misericórdia não impedem de esperar da autora ainda no futuro uma verdadeira obra-prima.

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