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CARTAS TELEPÁTICAS - EDGAR PÊRA (2024)

  • Foto do escritor: Antonio Roma Torres
    Antonio Roma Torres
  • 23 de abr.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 24 de abr.


AS MULTIPLICAÇÕES DOS EUS


António Roma Torres

 


Edgar Pêra é um cineasta invulgarmente prolífico. O IMdb assinala 58 filmes dirigidos. A Wikipedia (referida a 2019) quase uma centena, incluindo longas e curtas-metragens, proto-filmes, kino-diaries, vídeo-instalações, cine-concertos e music-videos. O Festival Internacional de Cinema de Rotterdam qualificou-o como polímata. Muito do seu cinema e do que atrevidamente dele se aproxima nas portas e janelas que Pêra lhe abre - e a sua primeira longa, digamos de ficção, tinha por título precisamente A Janela (2001) - é genuinamente experimental e a sua actividade espraia-se também pela pintura e pela escrita, de variados géneros incluindo a investigação académica - O Espectador Espantado (2016) é título simultaneamente de um filme e da tese de doutoramento apresentada na Universidade do Algarve.


Cartas Telepáticas (2024) tem no título a indicação V 32, como a sugerir que possa ser uma versão 32 de alguns projectos eventualmente a partir do uso aleatório dos algoritmos de Inteligência Artificial publicitadamente usados no filme, aliás a ser continuado ao que indica o genérico final.


No cinema de Edgar Pêra coexiste assim um desejo de fixação evidente no que se considera habitualmente o cinema e um cáracter provisório, ensaístico, repetível ou performativo, próprio do efémero e notoriamente instável.


Pelo lado do repetível temos dois personagens reais, históricos, convocados para um encontro não presencial, supostamente epistolar, mas realmente ao que se conhece não acontecido. A telepatia que o filme refere no título é eventualmente de natureza cósmica para repetir mais o universo da literatura de terror de Howard Phillips Lovecraft do que o mais místico e filosófico da poesia e ensaio de Fernando Pessoa, ambos os personagens já abundantemente citados em filmes anteriores de Pêra: Lovecraft no pouco anterior Caminhos Magnétycos (2018), mas também no cine-concerto Lovecraftland (2018); e Pessoa em Lisbon Revisited (2014) e no mais recente Não Sou Nada (2023).


Diga-se que Lovecraft e Pessoa coincidiram no mundo de aparências que a película pôde registar na quase totalidade das suas vidas, Pessoa (1888-1935) e Lovecraft (1890-1937). E outras coincidências marcaram as suas vidas, desde o culto dos alter-egos, entre heterónimos e pseudónimos, até o suicídio dos mais íntimos amigos literários, Mário Sá-Carneiro (1890-1916) e Robert E. Howard (1906-1936), criador de Conan, o Bárbaro, ou o significado alargado dos próprios nomes, Pessoa e Lovecraft.


Cartas Telepáticas desenvolve-se como um jogo de tabuleiro em que aparentemente há uma equivalência entre os movimentos das peças e a geometria oculta que faz pressentir o significado de um mundo exótico, mas de inegável fascínio.


Não se pode negar paciência à construção de um verdadeiro mundo ficcional, onde entretanto a mão de Pêra parece tudo controlar, desdobrando-se como os seus heróis em múltiplos personagens complementares: ele próprio a quem atribuiu uma autoria difusa que não circunscreveu à realização, talvez por justificado pudor da interferência da Inteligência Artificial na criação das imagens; Eduardo Ego, nos prompts e libreto, e Artur Cyanetto, na autoria sonora onde há uma quase paralela lógica criativa muito apoiada na voz do actor americano radicado em Portugal, Keith Esher Davis, que dobra o diálogo a que as cartas dizem respeito nas vozes de ambos os personagens, morto aos 77 anos antes da estreia do filme e a quem o mesmo é dedicado.


A voz de Keith Davis dá uma dimensão encantatória à correspondência extensa de Pessoa e Lovecraft, minuciosamente “reescrita” por Edgar Pêra e publicada na revista Pessoa Plural dirigida pelo especialista pessoano colombiano, Jerónimo Pizarro, na norte-americana Universidade de Brown, mas devemos dar também atenção à mimética heteronímia de Pêra, como ele confessou a Pedro Portugal, numa entrevista a propósito do seu obsessivamente pessoano Não Sou Nada: “Por vezes até tenho um pensamento, e começo à procura de um nome para um alter-ego que personifique por exemplo os meus pensamentos mais sombrios. É algo que tem um lado lúdico, uma componente terapêutica, e um lado puramente criativo.”. Se os pseudónimos cobrem as diferentes formas da criação cinematográfica (ao Cyanetto da música e som, e ao Dr. Ego do texto, teríamos de juntar o vertoviano homem-kâmera, Marvel Kisch), sente-se eventualmente a falta no resultado final do Ynspektor Turniket que rege a montagem.


O filme como que pára numa porta, o primeiro intertítulo que se inspira num conto escrito em inglês por Pessoa em 1906. “A porta começou a obcecar-me; comecei a receá-la e a dar-lhe o habitual pontapé como uma superstição: o escravo reza e sacrifica-se ao Deus que desdenha, mas que receia demasiado para que se lhe oponha. Eu abria a porta com uma sensação estranha na minha pele e deixava a sala muito rapidamente.” À porta regressa no intertítulo final, emparelhado com o outsider de Lovecraft, um conto escrito em 1921. “Infeliz é aquele a quem as memórias da infância trazem apenas medo e tristeza”. Pelo(s) meio(s) há um castelo do desconhecido comum a ambos os textos. O que conhecemos não é exterior ao que estamos preparados a conhecer, o sensacionismo. As imagens são irreais como numa experiência sensorial psicadélica. É um real transformado que raramente se torna assustador. O medo é simplesmente o desconhecido aproximando os textos de Pessoa e Lovecraft. Os olhos sobressaem e vêem menos do que são vistos. Habitam o filme o sonho composto por Dali para Spellboud/A Casa Encantada (1945) de Hitchcock, a espiral hipnótica de Vertigo/A Mulher que Viveu Duas Vezes (1958) ou a luz e as sombras dos túneis de Viena em O Terceiro Homem (1949) de Wells, ou seja, um tempo após uma quase catástrofe agora de novo a penetrar a actualidade. “Não há nada como não realidade, mas sensações. Ideias são sensações de coisas, mas não colocadas no espaço e às vezes nem mesmo no tempo. Sonhos são sensações com apenas duas dimensões. Ideias são sensações com apenas uma dimensão. Temos de criar uma dimensão única. As sensações pretendem realizar na arte uma decomposição da realidade”.


Cartas Telepáticas surge como um exemplo de sobressaturação, por vezes mágico, mas nunca confuso. Edgar Pêra constrói laboriosamente uma realidade paralela e nada é tão aleatório como parece, mas a organização interna, a repetida recorrência em novas formas e múltiplas revelações paradoxalmente indecifradas, nunca se resolvem ou apaziguam.


Exemplo muito interessante é o longo texto de 127 páginas publicado na revista Pessoa Plural, 22 (Fall 2022, 440-567), Cartas Telepáticas: Projecto de livro-filme, correspondência (em duplo sentido), fictícia, trocada entre Fernando Pessoa e Howard Phillips Lovecraft que excede largamente o material reflectido no posterior filme que agora nos é apresentado, que Edgar Pêra “trans(es)creveu” num intervalo a que a pandemia o obrigou antes do início da rodagem do seu maior filme Não Sou Nada, e apresenta como uma montagem que “apesar de conter(…) apenas textos de Pessoa e Lovecraft (…) são uma ficção, que põe em diálogo os poemas, contos, ensaios, e, sobretudo as cartas destes dois autores”. 


Numa auto-entrevista (!?) – Entrevista com o Eterno Espectador Espantado, Não Sou Nada Um Filme Pós-Pessoano de Edgar Pêra, coord. Jerónimo Pizarro, Tinta da China, 2024, 123-145 - Pêra dizia: “Os objectivos do filme não serão experimentais, mas a sua metodologia preparatória é. Para o espectador talvez uma obra seja experimental porque a vê pela primeira vez, mas essa sensação de estranheza não é partilhada pelo criador, que conhece intimamente a sua obra. (…) Se regressarem aos meus filmes, verão, através desse manto de aparências formais, os temas, as personagens, uma realidade palpável, concretizada de uma forma complexa. (…) Essa estranheza entranha-se…”.


E a Teresa Lima, estudiosa dos escritos e desenhos de Pêra em tese universitária ainda não concluída, mas esboçada já (em Cadernos Diários de Edgar Pêra: Uma Leitura Pessoana, Pessoa Plural, 25, Spring, 2024, 57-77), na mesma publicação, afirma: “O Pessoa e o Lovecraft (…) eram altamente conscientes, hiperconscientes. Não beneficiavam do sonambulismo (do recurso à normalidade de que falávamos há pouco) enquanto antídoto para evitar sofrer de perturbações psíquicas. Pelo contrário, procuravam esse estado de lucidez, que, de resto, é abordado no Livro do Desassossego.”


Dá a impressão de que Edgar Pêra acredita que o cinema é a forma em que esse desassossego se consegue seguramente plasmar.

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