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LAVAGANTE – MÁRIO BARROSO (2024)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • há 10 horas
  • 7 min de leitura

O LUGAR DO(S) MORTO(S)

António Roma Torres

 

Numa das primeiras cenas de Lavagante, Cecília (Júlia Palha) numa conversa depois da representação de Tosca de Puccini no São Carlos declara em tom crítico não ter em grande conta os sacrifícios inúteis, num dos motes que percorre o filme ao bom estilo de António-Pedro Vasconcelos.


Acredito que o realizador Mário Barroso quando Paulo Branco lhe propôs dirigir o filme, após a morte de António-Pedro Vasconcelos, tenha ponderado o sacrifício que a tarefa lhe imporia e até a utilidade do mesmo.


Mas a verdade é que se saiu muito bem dela e a levou a cabo com o equilíbrio de um projecto que, ainda que se mantenha fiel aos muitos autores deixados no percurso, revela finalmente Mário Barroso numa justa dimensão como um autor e não o mero primeiro responsável entre muitos outros técnicos, todos qualificados e evidentemente na sua área entendidos como criadores, que a direcção dos seus três primeiros filmes testemunhava.


Depois de ter sido, como intérprete, o Camilo Castelo Branco de Manoel de Oliveira, em Francisca, O Dia do Desespero e O Velho do Restelo, e aliás de ter também assinado como realizador Um Amor de Perdição (2008), e depois de ter sido o director de fotografia de 77 obras de cinema (entre as quais 6 de Manoel de Oliveira e 5 de João César Monteiro) e televisão, e ainda ter dirigido num início tardio também O Milagre Segundo Salomé (2004) e Ordem Moral (2020), além dos filmes para televisão Aniversário (2000) e dos episódios Carolina, Fernando e Eu, Amigos como Dantes e Love Online (todos de 2005), da série Amores/Desamores que repartiu com Jorge Paixão da Costa, Mário Barroso atinge agora aos 78 anos a dimensão de um cineasta de primeira água.


E, no entanto, fez justiça também aos traços deixados pelo romancista José Cardoso Pires, pelo argumentista António-Pedro Vasconcelos e pelo produtor Paulo Branco.


Comecemos então pelo livro. Trata-se de uma publicação póstuma, da iniciativa de Nelson Matos, editor da obra de José Cardoso Pires, antes na Moraes e na Dom Quixote, e por conta própria em 2008 no 10º aniversário da morte do romancista, com a aprovação da viúva e filhas. O texto não era propriamente inédito, uma vez que fora publicado como “um capítulo do seu próximo romance, ainda, provisoriamente, sem título” em O Tempo e o Modo, nº 11, em Dezembro de 1963, contudo sem referência a Cecília ou à crise académica de 1962, correspondendo grosso modo à primeira e parte da segunda das catorze partes assinaladas em numeração romana, três páginas iniciais intituladas Um Lavagantes e Outros Exemplares com velada alusão à Censura (“minha mão viciada, minha mão medrosa”) que o conto revelará abertamente. Cardoso Pires aliás terá continuado a trabalhar nele até 1968, data da publicação de O Delfim, segundo a datação da excelente recensão crítica de Carina Infante do Carmo em Colóquio/Letras, n.º 173, Jan. 2010, p. 216-218. E logo na III parte o barman, sem nome no livro, Jerónimo n’O Tempo e o Modo e Mário (Rui Morisson) no filme, define em imagem impressiva o lavagante: “se formos a ver bem, talvez o Pigmaleão tenha alguma coisa de lavagante”. O tema de Pigmaleão (ou de My Fair Lady, na versão musical) é assim relacionado com os encontros de Daniel (Francisco Froes, num ponto de ligação com Parque Mayer), um médico jovem que “não é comunista, mas colabora com eles”, com Cecília jovem estudante de arquitectura, chegada a Lisboa de uma família conservadora do Norte.


Mário Barroso lera já Lavagante de Cardoso Pires contagiado pela versão de António-Pedro Vasconcelos de que ele lhe falara. Carina Infante resume habilmente o conto: “Lavagante é uma história de predação, política e amorosa, num país imobilizado. Recompõe o universo masculino marialva; encena os bloqueios de certa oposição anti-salazarista, desencantada pelo Pós-Guerra, pela fraude eleitoral de 1958 e, naturalmente, pela repressão prolongada da moral católica, da polícia política e da Censura. «Estamos em plena Idade Média, com astronautas a voar por cima de nós» (p. 43), sintetiza Cecília, a jovem enigmática («a rapariga que se vê ao espelho e que sabe calcular», p. 60) que, em plena Crise Académica de 1962, atrai Daniel, médico solidário com os estudantes perseguidos, e que dubiamente faz lograr a relação perante a prisão do amante, cedendo ao cerco sedutor de um inspector da PIDE. (…) Ainda assim, o encontro desabitado que dá subtítulo à novela remete para o continuum ficcional de Cardoso Pires, com as suas personagens em crise, envolvidas em redes de violência social, sedução libertina ou conflito sexual.”


A julgar pelo resultado final, a adaptação de António-Pedro Vasconcelos terá tornado o ambiente mais habitado, movido por um sentido narrativo arejado que desenvolve alguns leit-motiv do permanente diálogo entrecortado que costura o relato numa paradoxal virgindade restaurada, à imagem da himenorrafia que Cardoso Pires glosara já no texto inicial com intenção certeira. Há paralelos com alguns dos seus filmes, desde a trilogia inicial, Perdido por Cem, Oxalá e O Lugar do Morto, mas de certa forma também o filme-charneira A Bela e o Paparazzo, subvalorizado talvez em consequência do título frívolo, ou a segunda trilogia que o filme faria com Parque Mayer e Km 224, e uma tentação explícita, ou apenas esboçada, de deixar o país, num exílio de estilo, mas com maior ajuste à biografia pessoal de Mário Barroso, há décadas a viver em Paris.


António-Pedro Vasconcelos viveu os últimos anos absorvido pela série televisiva A Conspiração, trabalho documental minucioso em cinco episódios televisivos sobre a preparação do golpe militar que espoletou a revolução de Abril, a que se associou o trauma com o acidente infausto com um trator que roubou a vida ao mais novo dos seus três filhos. Lavagante foi inicialmente anunciado também como episódio televisivo integrando uma série de inspiração literária intitulada Trezes (tantos eram os episódios previstos com diferentes autores), mas acabou por resultar em projecto de filme ainda dirigido por António-Pedro Vasconcelos, a que o ICA atribuiu um subsídio em 2023. Porém os amigos perceberam o processo de luto que lhe retiraria provavelmente a energia para um novo filme, que particularmente nos derradeiros filmes era muito minucioso em sucessivas reescritas do argumento.


Mário Barroso terá trabalhado rápido no projecto que Paulo Branco lhe ofereceu por morte de António-Pedro Vasconcelos em 5 de Março de 2024 de forma a concluí-lo no próprio ano, mas nem isso o impediu de tomar o filme como projecto próprio.


Paulo Branco que fora o produtor de Km 224, o último filme de António-Pedro Vasconcelos, após um longo período de afastamento, depois de Oxalá, ainda numa fase inicial de ambas as carreiras no cinema na produtora VO Filmes que tiveram em conjunto e onde germinou o conflito que os afastou longo tempo, assume aqui um papel de produtor diferente – “de um produtor de ‘cinema de autor [passou] a autor de “cinema de produtor”, como introduz Vasco Câmara na entrevista que lhe fez no Público, 25/10/2024 -  do assumido com os outrora novos cineastas portugueses, e incluindo os nomes fortes de Manoel de Oliveira e João César Monteiro, ensaiado aliás nos filmes de produtor que foram A Herdade de Tiago Guedes e Os Papéis do Inglês de Sérgio Graciano, mas o certo é que parece que isso paradoxalmente libertou Mário Barroso.


Enquanto no seu anterior A Ordem Moral cobre com uma direcção cinematográfica convencional, e até em certo sentido espectacular na reconstituição histórica, mas que na atenção ao cenário parece ficar por fora do grito de revolta da proprietária do Diário de Notícias em 1918 envolvida numa fuga romântica com o chauffer e internada contra vontade no Hospital do Conde de Ferreira no Porto por ordem do marido, já antes levado ao cinema por Monique Rutler em Solo de Violino, Mário Barroso em Lavagante opta pela imagem a preto e branco, não tanto por retratar o Portugal cinzento de Salazar mas numa aproximação nouvelle vague que dá o tom justo ao fascínio transgressor mas não directamente político de Cecília, a que corresponde aliás uma interpretação brilhante de Júlia Palha. Essa opção parece justa, até na distância de um duplo de António-Pedro Vasconcelos, que provavelmente envolveria a encenação das cores e do charme na linha de Parque Mayer, aliás também sobre um período até claramente duro do salazarismo, o que percorre também a criação de uma nova personagem ao anterior trabalho do Cardoso Pires e António-Pedro Vasconcelos, na Sara (Leonor Alecrim), enfermeira que constitui de certa maneira um duplo do médico Daniel, lembrando até o par Ruy de Carvalho e Isabel Ruth de Domingo à Tarde de António Macedo, filme também de inspiração literária, nesse caso de Fernando Namora, mas onde o tédio superava o frémito que aflora a cada passo o desenvolvimento de Lavagante, e tornando mais presente a oposição comunista na linha da própria memória da época no círculo que Mário Barroso frequentava.


Lavagante-filme torna os encontros habitados, contrariando visivelmente o subtítulo do Lavagante-conto mais consonante com o filme de Macedo e ampliando o diálogo de Zé (Nuno Lopes), o jornalista narrador, com o Amigo (designação e maiúscula enfaticamente repetidas no conto), por uma estrutura polifónica onde os vários pólos se vão cruzando como postos de observação, numa estrutura em que o lavagante acaba por figurar o pide Salaviza (Diogo Infante) e não o apaixonado Daniel. É tentador também procurar, num lugar de tantos mortos e afinal paradoxalmente da vida sempre resistente, o encanto da mulher onde todos os perigos parecem confluir, num paralelo com outra adaptação cinematográfica de Cardoso Pires, A Balada da Praia dos Cães de José Fonseca e Costa. Júlia Palha talvez faça recordar a espanhola Assumpta Serna numa intriga amorosa que se sobrepõe à política e atente-se que no final não nos fica o melodramático Quizas, Quizas, Quizas mas uma enigmática carta de despedida, esvoaçante na beira do mar, aí seguindo o argumento de António-Pedro Vasconcelos e não o seu texto revelado no conto de Cardoso Pires.

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