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OS PAPÉIS DO INGLÊS - SÉRGIO GRACIANO (2024)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • 24 de dez. de 2024
  • 8 min de leitura

Atualizado: 1 de jan.



ÁFRICA DELE

António Roma Torres

 

Em 1985 Sydney Pollack - um realizador norte-americano com formação como actor (faria, já depois de reconhecido como director, jus a esse outro título como co-protagonista de Maridos e Mulheres de Woody Allen e De Olhos Bem Fechados de Stanley Kubrick), largo trabalho de realização em televisão na primeira metade da década de 1960 e chegada ao grande ecrã com o vigor do cinema liberal, que em americano quer dizer de esquerda, na meia década seguinte, desde Chamada para a Vida, em que Anne Brancoft, oscarizada num filme de um dos iniciadores da sua geração, Arthur Penn, em O Milagre de Ann Sullivan, contracenava, sem nunca coincidir no mesmo plano cinematográfico, com um Sidney Poitier, estudante de medicina a atender um telefone-sos a que recorre depois de ter tomado barbitúricos, e A Flor à Beira do Pântano, primeiro de muitos filmes com Robert Redford numa adaptação de Tennessee Williams com assinatura no argumento de Francis Ford  Coppola, antes de se tornar um big boy no seu inicial A Noite é Perversa (no original precisamente You’re a Big Boy Now) que anunciava já uma outra mais inovadora geração, até à estonteante maratona dançante de Os Cavalos Também se Abatem – lança-se na grande produção de África Minha que lhe valeria de uma assentada sete óscares, incluindo o de melhor realização.


Mas o que o filme principalmente descobria era uma nostalgia de África, verdadeiramente pós-colonial, à boleia da escritora dinamarquesa Karen Blixen e da sua produção literária assinada com o pseudónimo de Isak Denisen, personificada no filme por Meryl Streep apenas nomeada para um óscar já depois de ter merecido um secundário em Kramer contra Kramer e um principal em A Escolha de Sofia. E o filme começava com uma memória pessoal da vida noutro continente - "Eu tinha uma fazenda em África, no sopé das colinas de Ngong. A linha do Equador atravessa estas terras altas, cem milhas a norte, e a quinta fica a uma altitude de mais de seis mil pés. Durante o dia sentia-se que se estava muito alto, perto do sol, mas as manhãs e as tardes eram límpidas e repousantes, e as noites eram frias." – que depois se prolongava numa história de amor a África e a um homem, Denys (Robert Redford), de quem Karen se despede no funeral - "Agora leva de volta a alma de Denys George Finch Hatton, que partilhaste connosco. Ele trouxe-nos alegria... nós amámo-lo muito. Ele não era nosso. Ele não era meu."


Em Os Papéis do Inglês é a alma de Ruy Duarte de Carvalho que de certa maneira paira como uma sobre-assinatura no filme, ele que foi também poeta, romancista, cineasta e antropólogo, europeu de Santarém, mas angolano de nacionalidade verdadeiramente escolhida, e nos obriga a questionar o que é a autoria no cinema.


O filme foi realizado por Sérgio Graciano, um cineasta prolífico, que em vinte anos, desde 2005, realizou treze séries de televisão (entre elas A Generala e a segunda temporada de Auga Seca) e dez longas-metragens (entre as quais Salgueiro Maia, O Implicado e Soares é Fixe, ilustrações biográficas não especialmente notáveis de duas figuras destacadas do processo revolucionário português, agora que se comemoram 50 anos sobre o 25 de Abril, e, em Angola ou a essa ex-colónia portuguesa referidos, Njinga Rainha de Angola, sobre a revolta do povo de Ndongo e Matamba no século XVII, e O Som que Desce na Terra, já em plena guerra colonial em volta de uma mulher que procura o marido misteriosamente desaparecido na frente de combate, a pretexto de levar mensagens gravadas das famílias junto dos militares), além de meia dúzia de curtas-metragens, não revelando ambições de fazer um cinema de autor, mas mostrando-se aqui capaz de ultrapassar a mediania da simples competência técnica mínima, confortado pela produção do prestigiado Paulo Branco, que apadrinhou na sua longa carreira muita da produção considerada de autor no cinema português e europeu, ou até mundial.


Paulo Branco, aliás, confessa em entrevista a Vasco Câmara no Público que "neste momento, há uma nova geração. A maior parte dos cineastas e produtores conheceram-se nas escolas de cinema. Portanto, não é a mim que a maior parte deles se dirige. É normal." Isso levou-o, agora já um veterano de 74 anos, a procurar reorientar a sua carreira como produtor, procurando uma maior influência na génese de alguns filmes que produz, por exemplo, com Tiago Guedes em A Herdade propondo-lhe uma saga geracional nas abruptas mudanças políticas, ao modo de 1900 de Bernardo Bertolucci, no Alentejo latifundiário que Paulo Branco conheceu na actividade do pai como veterinário, e agora com Sérgio Graciano, propondo-lhe uma adaptação de Os Papéis do Inglês, romance-crónica principal da trilogia de Os Filhos de Próspero, de Ruy Duarte de Carvalho, de quem Paulo Branco produzira no cinema Moya - O Recado das Ilhas, em 1989, nas próprias palavras do autor “uma indagação dos traços de uma crioulidade sedimentada numa dinâmica Africana, Atlântida e Lusófona (…) a que a circunstância insular e a exuberância vulcânica da terra e da expressão cabo-verdianas acolhem as inquietações personalizadas de uma insularidade psicológica e social que veicula o eco de uma África que leva às suas últimas consequências o confronto shakesperiano entre Próspero e Caliban”.


Mas a quase totalidade dos filmes que dirigiu foi em Angola e ele próprio escreveu em A câmara, a escrita e a coisa dita (Luanda: Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1997, citado por Julia Goulart Silva em Ruy Duarte de Carvalho: O Dizer Poético de Angola): “a minha consciência de poeta como a de cineasta, e antes disso a de técnico agrário, porque essa função me punha em contato com as populações rurais cuja ruralidade, cuja cultura, enfim, eu entendia mal, me trouxeram à antropologia. Mas devo dizer que foi o cinema que efectivamente me impôs a opção. A quase absoluta totalidade dos filmes que fiz foram rodados no Sul de Angola registando e transpondo para cinema, ritualizando, portanto, os seus comportamentos e os seus testemunhos”.


Note-se que a antropologia e estética que caracterizou o olhar de Ruy Duarte de Carvalho foi claramente (ou paradoxalmente?) a de “quem não é do lugar”, como recorda o seu poema publicado em Os Papéis do Inglês: “Coisas que só se revelam / A quem não é do lugar: / Porém exigem estar / Até sentir com elas / O tempo do lugar / Que não se dá a ler / Só de as olhar / E nem a quem / Faz parte do lugar. / Partir de novo então / Para captar / Da mesma forma e algures / O tempo que a haver / Só noutro lugar” (citado por Christian Fischgold, em O Nomadismo Literário de Ruy Duarte de Carvalho, em Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (2019), Marta Lança et al. (org), p. 73-82, Lisboa: BUALA - Associação Cultural).


E isso reforça a legitimidade de Sérgio Graciano que traz um olhar de “outro lugar”, mediado também pelo excelente trabalho de argumento de José Eduardo Agualusa, branco mantendo a nacionalidade angolana do lugar onde nasceu, e ultrapassado o auteurism, herdado principalmente dos Cahiers du Cinéma Periode Jaune, que postulava o realizador como o autor primário do filme e preferia obras menores de um verdadeiro autor ao mais brilhante filme de um funcionário apenas competente.


Agualusa é um dos mais importantes nomes da literatura contemporânea de língua portuguesa, recentemente seduzido pelo fascínio cinematográfico com a longa-metragem de animação Nayola, a partir de um texto de teatro “escrito a quatro mãos” com Mia Couto, outro vulto maior da literatura lusófona africana, e o filme de ficção Os Sobreviventes, de José Barahona, cineasta modestamente conhecido, falecido nem dois meses depois da estreia do filme no circuito de exibição, de que Agualusa fora também argumentista a partir de uma ideia original do cineasta, e ele próprio explica no dossier de imprensa de Os Papéis do Inglês, a “história do roteiro”: “Percebi logo que não seria nada fácil criar um enredo coerente a partir de três livros tão singulares, tão densos e complexos, tão difíceis de classificar. O primeiro, Os Papéis do Inglês, é um romance quase convencional, com o autor contando como reconstruiu um drama autêntico: o suicídio de um aventureiro inglês no sul de Angola, no início do século XX. Os dois outros livros, A Terceira Metade e Paisagens Propícias, muito pouco lidos, recolhem uma mistura de arrojados exercícios poéticos; ideias para romances futuros e teses sociológicas e antropológicas. No meio daquelas páginas, frequentemente caóticas, absurdamente brilhantes, retirei dois personagens extraordinários, Trindade e Severo, e reinventei-os, inserindo-os no fio da história principal. Foi um trabalho de relojoaria, delicado e fascinante, que me deu enorme prazer. Escrever este guião também me permitiu explorar e aprofundar a personagem romanesca do próprio Ruy Duarte, e algumas das suas obsessões.”


José Eduardo Agualusa concretiza portanto uma abordagem dialógica de Os Filhos de Próspero de Ruy Duarte de Carvalho, onde na realidade há um conjunto polifónico de autores, característica já apontada numa tese de doutoramento brasileira de 2015, na Universidade de São Paulo, Narrativas de Ruy Duarte de Carvalho, de Alexandre Gomes Neves como “a produção da existência a partir das configurações das identidades”, ou mais recentemente noutro trabalho académico de feição claramente bakhtiniana, Porque Narrar é Contar: As Vozes em Evidência em Os Filhos de Próspero de Ruy Duarte de Carvalho, de Laura dos Santos Dela Valle, apresentado em 2021 na Universidade de Porto Alegre.


Assim não há um só “lugar de fala”, para usar o paradigma da feminista negra brasileira Djamila Ribeiro, mas antes um cruzamento de referências que se encontram (e desencontram) num lugar universal que pode ser uma espécie de palco, com o seu quê do pasoliniano Appunti per un'Orestiade africana, aqui identificado no extremo sul de Angola, da cidade de Moçâmedes e do deserto do Namibe, “essas paisagens, e as populações nelas contidas, com particular destaque para os pastores cuvale, mais conhecidos como mucubais, [que] são o centro de toda a sua obra [de Ruy Duarte de Carvalho], não só da obra poética, mas também ficcional, ensaística e até cinematográfica”, ainda no roteiro de Agualusa.


O filme aborda o romance de Ruy Duarte de Carvalho, publicado inicialmente em 2000 e reeditado agora (Tinta da China, 2024), a partir de uma cena onde nada parece seguro não apenas na realidade circundante (um pequeno almoço em 1974 com ecos das transformações numa Metrópole longínqua) mas na própria narração indefinida que mal identifica a chegada à idade adulta do cozinheiro Trindade (David Caracol), mas rapidamente ganha um fôlego inesperado na caminhada a Sul onde Ruy (João Pedro Vaz) se vai destacar nos largos horizontes no deserto.


Aí é um espaço nómada que se reconhece, nas tendas ou na carrinha, onde os encontros são demorados como que suspensos numa outra dimensão do tempo africano e as conversas se indecidem em aberturas que por vezes não chegam a ser exploradas - magníficos, o demorado plano contínuo no almoço de acolhimento de Kaluter (Miguel Borges), o antigo colono que regressa à terra que abandonara talvez inadvertidamente muitos anos antes, e as jovens Camila (Joana Ribeiro) e Paula (Carolina Amaral), de uma nova geração que de África conhecera apenas os relatos, ou a conversa privada entre Camila e Ruy no começo da noite tropical.


Mas a este palco natural são chamados ainda os naturais de Angola, Severo (Carlos Agualusa) ou Kappa (Délcio Ribeiro), com os ecos distantes de uma cidade afinal próxima ou deixando apenas adivinhada uma convivência ainda com alguma memória tribal, ou os papéis de um tal Archibal Perkings, cidadão britânico que se suicidara e de que se fala de forma recorrente, espécie de bússola que aponta a uma outra África misteriosa e aparentemente perdida nas brumas da memória do início do século que ainda sustentava os antigos impérios.


E aqui não saberemos decidir com facilidade o que permite uma certa noção de imponderabilidade que torna Os Papéis do Inglês uma aliciante surpresa, se a paisagem natural e a excelente direcção de fotografia de Mário Castanheira, se a habilidade das palavras de um escritor experimentado como José Eduardo Agualusa.

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