JUSTA - TERESA VILLAVERDE (2025)
- António Roma Torres

- há 4 horas
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PERDIDOS NUM FUMO DENSO
António Roma Torres
Talvez nunca o título de um filme tenha sido tão essencialmente justo. Justa é o nome de uma das protagonistas, criança em processo de maturação que interroga e responde, confia e duvida, sente e cala, perante a dimensão inenarrável da catástrofe. Não há justiça numa situação tão extrema como a que a afectou e ao seu círculo próximo, mas é a medida exacta, a proporção humana perante a dimensão natural de alta improbabilidade, de desrealização cósmica, que há que reencontrar e que precisa talvez de uma idade maior, título precisamente do primeiro filme de Teresa Villaverde, cineasta que revela agora o pleno domínio da sua capacidade expressiva.
O filme parte de uma realidade concreta, o devastador incêndio de Pedrogão Grande em 2017 e o halo que deixa em sua volta onde tudo parece inesquecer. Mas, aceite essa identificação, tudo o mais é uma criação, procura de algo que não está lá, mas perdura, parecendo vir dar um outro sentido a situações limite que Teresa Villaverde filmara já, de isolamento ou perseguição que a realidade parece não poder comportar.
Justa é o auge de um percurso estético que não assenta na proximidade psicológica ou na expressão plástica. E, no entanto, é uma obra que aposta muito no valor presencial dos actores ou no poder das palavras em diálogos ricos, mas de maneira alguma enfáticos. É acima de tudo um acto de coragem.
Justa (Madalena Cunha) tem dez anos e perdeu a mãe. Lúcia (Filomena Cautela) é a terapeuta regressada de França, aparentemente perdida das suas raízes. Mariano (Ricardo Vidal) é o pai cuidador cujo rosto deformado por vasta queimadura cicatrizada não consegue acompanhar a expressão da postura acolhedora. Elsa (Betty Faria) é brasileira e cega, sabendo que “quem não vê precisa de uma boa memória”. A sua filha (Anabela Moreira) não consegue acolhê-la em casa e acaba por vê-la escapar quando esboçava ceder. Simão (Alexandre Batista) não tem de quem cuidar, mas acode ao sofrimento alheio.
São personagens fortes. Sobreviventes, que um momento improvável une no trauma. Mas eles continuam a ser o que eram, não o que lhes aconteceu. Não há heroicidade em ser porque a realidade não traz alternativa. Simplesmente não é o fim da linha.
Justa não é somente o melhor filme de quantos Teresa Villaverde assinou. É algo a cuja luz os anteriores, A Idade Maior (1991), Três Irmãos (1994), Os Mutantes (1998), Transe (2006) ou Colo (2016), ganham outra dimensão. Quase uma década medeia este filme e o anterior filme de ficção e esse compasso talvez não seja irrelevante.
Na realidade o resultado não é alheio ao método de trabalho que escolheu. Impressionada pela imensa catástrofe que abalou o país nos fogos do verão de 2017, mas aliás não de imediato, Teresa Villaverde contactou elementos da população apenas munida de um caderno de notas. O seu objectivo porém não parece ter sido a reportagem, ficcionada que fosse. O filme não pretende reproduzir histórias reais da população sobre a qual o infausto acontecimento se abateu.
Assim Teresa Villaverde não põe o acento no impacto psicológico ou aponta para os dramas pessoais na situação. Os personagens surgem simplesmente como que suspensos, incapazes de voltar a uma continuidade no tempo real, mas ao mesmo tempo desenrolando maquinalmente as tarefas do quotidiano. Os diálogos são muito bem trabalhados, mas silenciam até um certo ponto a ressonância interior. Por vezes misturam-se numa inevitável trivialidade. O gesto, ou a sua ausência, por vezes falam mais que a palavra. E há no olhar da câmara um respeito pelo que parece exceder o limite do imaginável.
Embora não descure o tratamento narrativo e até um ritmo de aproximação de cada um dos personagens, o filme coloca-se no plano do ensaio reflexivo sobre os limites da humanidade e surpreendentemente podemos perceber a chave de compreensão de alguns filmes anteriores da realizadora, das perplexidades do desenvolvimento juvenil em A Idade Maior ou As Três Irmãs, ao ambiente opressivo de Os Mutantes ou à perseguição aparentemente inexplicável de Transe e a intimidade dura e ameaçadora de Colo.
O cinema de Teresa Villaverde vem-se afirmando no percurso de uma abordagem social e de amplo compromisso político, mas num clima existencial, quase metafísico, que elabora as suas preocupações sobre uma absurda e inescapável condenação ao sofrimento onde, resiliente, desponta uma humanidade sobrevivente. Não é poesia o que a autora procura, mas talvez uma esperança de salvação intrínseca ao ser humano. Raramente o cinema tê-la-á retratado de uma forma tão convincente.


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