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AS MENINAS EXEMPLARES - JOÃO BOTELHO (2025)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • há 1 dia
  • 4 min de leitura

PARA NÃO DEIXAR QUE A CONVERSA ACABE

António Roma Torres

 

Ao décimo sétimo filme, longas-metragens de ficção, que tem ainda na sua conta alguns documentários e trabalhos maiores e menores para a televisão, João Botelho continua uma rota precisa que inaugurou em Conversa Acabada (1981), um diálogo cinematográfico entre os mundos de dois nomes maiores da nossa literatura, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Trata-se de um itinerário por alguns nomes maiores da nossa literatura clássica - Fernão Mendes Pinto (Peregrinação, 2017), Almeida Garrett (Quem és Tu?, 2001), Eça de Queirós (Os Maias, 2014) e de novo Fernando Pessoa (O Filme do Desassossego, 2010) - mas também recente - Agustina Bessa Luís (A Corte do Norte, 2008) e José Saramago (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 2020), sempre estabelecendo alguns paralelos ou cruzamentos numa investigação estética disciplinada e com uma atenção didática que o tem levado a valorizar em alguns casos o público escolar. Agora em As Meninas Exemplares (2025) prolonga um alargamento a outras áreas, neste caso a pintura e Paula Rego, como no anterior Um Filme em Forma de Assim (2022), a publicidade gráfica e Alexandre O’Neill, mas não prescindindo, particularmente nestes dois filmes, de tudo envolver numa ironia buñueliana que experimentara aliás noutro período anterior da sua carreira -  em Tráfico (1998), A Mulher que Acreditava Ser Presidente dos Estados Unidos (2003), e O Fatalista (2005), aí aliando à inspiração literária em Diderot.


A verdade, porém, é que com tantas citações bem expressas não fica apagada a presença tutelar de Manoel de Oliveira na obra de Botelho, desde logo expressa em O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu (2016) e em As Meninas Exemplares evocada em dois planos precisos, o buraco da fechadura (O Passado e o Presente) e a roda do coche (O Dia do Desespero). Realmente o cinema de Botelho como o de Oliveira é muito pessoal e particular, mas em todos os pormenores se sente um olhar complementar, de outro, que vem dos livros, da leitura, mas se re-cria nas voltas da imaginação e da composição. Com uma vida que é aura fantasmática da matéria sensível que pode ser trabalhada, investigada.


Assim a primeira referência do filme As Meninas Exemplares é a infância, mas se quisermos é a das crianças-adultos que todos fomos e que o filme transporta de uma forma gráfica que não podia ser alheia aos quadros de Paula Rego (1935-2022). E o trabalho de memória como que vem depois, o filho mais novo com três irmãs e a leitura dos livros da Condessa de Ségur que as meninas liam, Os Desastre de Sofia, As Meninas Exemplares e As Férias, ou a conversa em Veneza na Praça de São Marcos onde os tinham levado, a ele, o célebre Festival de Cinema e a ela, na sua dimensão internacional, uma exposição da sua pintura. E há o efeito de distorção que permite ver melhor a realidade e que Paula Rego explica com graça como a criança que dá um remédio ao cão e tem que apertar-lhe os queixos (em 1971 numa exposição na Galeria São Mamede em Lisboa, Paula Rego já usara citações de As Meninas Exemplares da russa Sofia Rostopchine, feita condessa em França, mas só muito mais tarde, em oito desenhos de 2001 abordará na sua obra gráfica “as aventuras e traquinices de Sofia”, segundo Catarina Alfaro, curadora da Casa das Histórias Paula Rego/Fundação D. Luís I).


A pintura de Paula Rego conta histórias, a moralidade da Condessa de Ségur troca as voltas às boas regras da obediência e há muita auto-terapia por trás disso, o que parece interessar mais João Botelho. Como conta Paula Rego no filme-diálogo com o seu filho Nick Willing sobre a série de quadros a menina com o cão: “Eu não sabia o que havia de fazer.(…) E eu pensei: para se dar um remédio ao cão tem de se apertar os queixos para ele abrir a boca. É uma coisa que magoa para fazer bem. Fiz uma data de meninas a abrirem a boca aos cães para lhe darem o remédio. Depois começou a outra que está a fazer a barba ao cão”. É esta deformação, uma dor para fazer bem, que parece habitar o mundo visual da criação artística de Paula Rego, “os seus bonecos” como ela dizia, que João Botelho soube criar enquanto cinema, contudo com a sobriedade de saber estar a contar uma história comum, a da infância em geral, que não é dele ou dela.


Evidentemente que a regra do cinema de João Botelho não assenta numa suposta figuração do real, embora tenha um compreensível sentido narrativo, e isso pode criar alguma dificuldade no espectador mais formatado nas convenções do próprio cinema. O trabalho de ilustrador, nomeadamente de livros infantis de Manuel António Pina, que precedeu a carreira de cineasta de João Botelho, preparou-o para esse alargamento do campo de expressão, que, no entanto, não rompe com a imediata evidência da realidade, e neste caso, talvez o mais extremo da sua filmografia exigiu um trabalho especial dos actores, nomeadamente de Rita Durão (Sofia), sempre nos limites da caricatura, entre a beleza e o grotesco, e muito próxima dos traços da pintura de Paula Rego nomeadamente no período das séries A menina e o cão (1987) e  Mulher-Cão (1994), mas também de Rita Blanco (Mme. Fichini), atenuados nos contrapontos “exemplares” de Madalena (Catarina Wallenstein) e Camila (Crista Alfaiate), ou Margarida (Joana Botelho) e os outros primos, e Mme. de Fleurville (Ana Burstoff), no que a psicanalista Celeste Malpique chamou “narratividade perversa” - Malpique, C. (2017) - Narratividade perversa e "humor negro" na pintura de Paula Rego, Revista Portuguesa de Psicanálise, 37 (2), 69-74.


É um feminino pré-pubertário, traduzido também na poesia de Adília Lopes (1960-2024), cuja Obra (2000) Paula Rego ilustrou ao mesmo tempo que se identificava “com a juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotectoras”, infância que João Botelho abordara com a mesma curiosidade penetrante no longínquo Tempos Difíceis – Este Tempo (1988), literalmente nas sombras de Charles Dickens.


Há ainda uma narradora (Victoria Guerra), acompanhada ao piano por André Piolanti, que mostra a compostura do discurso que nas entrelinhas ensina a desobedecer cum grano salis como os verdadeiros educadores devem fazer.

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