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A COMPLETE UNKNOWN - JAMES MANGOLD (2024)

  • Foto do escritor: Antonio Roma Torres
    Antonio Roma Torres
  • 3 de fev.
  • 4 min de leitura

OS TEMPOS ESTAVAM A MUDAR

António Roma Torres

 

A razão principal porque Bob Dylan deu apoio a A Complete Unknown e fez-lhe referências elogiosas, sustenta o seu realizador James Mangold, foi porque o filme “não é realmente um biopic”. Mangold descreve o filme como sendo mais uma peça de conjunto do que apenas sobre Dylan. E isso tem tanto maior importância quanto Dylan foi sempre um enigma, fugidio aos olhares exteriores que se lançaram sobre ele, particularmente no cinema, um meio que ele sempre viu com particular interesse, como realça a bem informada resenha de Luís Miguel Oliveira no Ípsilon/Público. O filme testemunha que os tempos estavam a mudar, ou, como diz o título do seu LP de 1964, “the times they are a-changin", quer na qualidade poética das suas letras, muito mais tarde reconhecida com a atribuição surpreendente do prémio Nobel da Literatura em 2016, quer na adesão à nova sonoridade da guitarra eléctrica em conflito que o filme mostra com a cultura da música folk de então (o argumento baseia-se precisamente no livro Dylan Goes Electric!: Newport, Seeger, Dylan, and the Night That Split the Sixties de Elijah Wald).


Nas cenas iniciais Bob Dylan (numa extraordinária interpretação de Timothée Chalamet) é um completo desconhecido (repare-se que a aura que Dylan soube criar em seu torno justificou talvez que o exibidor português não tenha querido traduzir o título do filme) que procura Woody Guthrie (Scoot McNairy) num hospital de Nova Iorque e aí conhece Pete Seeger (Edward Norton) que o vai apadrinhar no relativamente fechado mundo da música folk, onde um outro nome de uma nova geração já se destacava também, Joan Baez (Monica Barbaro). Chalamet, Norton e Barbaro estão muito justamente nomeados para os oscars de interpretação da Academia de Hollywoode e a qualidade das interpretações deu um suporte real ao retrato cultural de família que o filme constitui, sendo que nas oito nomeações do filme se juntam três para Mangold, nas categorias de melhor filme, melhor realização e, com Jay Cocks, colaborador de Scorsese em A Idade da Inocência, Gangs de Nova Iorque e Silêncio, no de melhor argumento adaptado.


James Mangold é um realizador irregular, tão depressa acantonado no cinema de género de que o inicial Cop Land – Zona Exclusiva ou o remake de o Comboio das 3 e 10 ou os filmes de mutantes Wolverine e Logan terão constituído bons exemplos, ou no espectáculo de corridas de automóveis em Le Mans’66 O Duelo; ou nas sequelas do Indiana Jones (e o Marcador do Destino) ou da Guerra das Estrelas (em pre-produção Down of Jedi), como capaz de obras indiscutivelmente interessantes como Vida Interrompida com um oscar de interpretação secundária para Angeline Jolie em início de carreira, ou uma muito estimável prévia incursão na folk music em Walk The Line em que retratou John Cash, agora reencontrado como um dos personagens em A Complete Unknown.


Pegar em Bob Dylan podia constituir uma aventura perigosa. Por um lado, ele provocou uma sensível mudança na vida e na cultura americana, mas foi sempre esquivo a uma demasiada exposição pública e mantém essa reserva por maioria de razão agora aos 83 anos. Por outro lado, há um antes e um depois da sua entrada na cena pública americana – Mário Lopes fala no Público, 50 anos depois de “treze meses que mudaram o [seu] mundo” celebrando o conjunto de LPs The Cutting Edge (1965-1966) e cita as suas Chronicles Volume One publicadas em 2004: “A cena da música folk fora como um paraíso que eu tinha que abandonar, como Adão teve de abandonar o jardim. Era simplesmente demasiado perfeito. Dentro de anos desabaria numa tempestade de merda. As coisas começariam a aquecer. Sutiãs, cartões de recrutamento, bandeiras americanas, até pontes – todos sonhavam pegar-lhes fogo. A alma nacional ia mudar e em muitos aspectos seria semelhante à Noite dos Mortos Vivos”. E é ainda Dylan que escreve: “A estrada que tínhamos pela frente seria traiçoeira e não sabia onde é que aquilo ia parar, mas meti por ela. Um mundo estranho acabaria por se revelar, um mundo tempestuoso com contornos desenhados pelos relâmpagos. Muitos não chegaram a perceber o que se estava a passar. Estava tudo em aberto. Uma coisa é certa, não só não era governado por Deus como também não era pelo diabo”


“Cinco décadas passadas – escrevia então Mário Lopes - a história é bem conhecida. Dylan a pegar na guitarra eléctrica e a rodear-se de banda completa, para horror dos puristas folk. Dylan a absorver de forma febril tudo o que o rodeava, passado e presente, sons, imagens e palavras. Chuck Berry, Beatles e Stones, Kurt Weill e Robert Johnson, Arthur Rimbaud e Jack Kerouac. Os jornais do dia, as lendas do passado e as palavras ouvidas na rua. Shakespeare ao fundo da rua em Memphis, Jesse James em espírito num blues fora-da-lei. Um homem magro a olhar em volta, paralisado, enquanto o seu mundo desaba em redor. Johanna a aparecer-nos em sonhos, uma e outra vez. Tudo pedrado para ver mais claramente. “How does it feel to be own your own, with no direction home, like a complete unknown, like a rolling stone?”.


Mas se as crónicas registam o tempo e fixam as memórias, mais difícil seria transformar tudo numa narrativa cinematográfica que não arquivasse o momento na gaveta das coisas mortas e enterradas que os oscars poderiam consagrar, mas já estariam definitivamente perdidas. O mérito do filme de James Mangold e do actor Thimothée Chalamet é que na realidade Bob Dylan (re)vive. É como uma cápsula do tempo que "permite armazenar objetos ou informações comuns a uma sociedade numa determinada época, para que o seu conteúdo seja preservado e acessado por gerações futuras". E esse não é mérito pouco.

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