A Divina Comédia - Manoel De Oliveira (1991)
- 24 de jun. de 2024
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Atualizado: 28 de set.
UMA PARTE DA VERDADE
A DIVINA COMÉDIA, de Manoel de Oliveira, é um filme de uma inteligência absoluta, apesar da aparente simplicidade com que joga e articula entre si textos universalmente consagrados da Bíblia a Crlme e Castigo e Os Irmãos Karamazov, de Dostolevski, de Nietzche ao nosso José Régio, que tanta importância tem na obra do Manoel de Ollveira, que do dramaturgo poeta adaptara já Benllde ou a Virgem Mãe e O Meu Caso. Aliás, desde já devemos assinalar que A DIVINA COMÉDIA tem uma evidente familiaridade com o anterior O Passado e o Presente e com esses dois filmes inspirados em Régio, o que é visível não apenas na sinalização de um espaço de referência (palacete/palco), mas nos próprios processos estéticos, no uso da câmara nomeadamente.
A DIVINA COMÉDIA, mercê do artifício da "Casa de alienados", que, aliás, en passant, salta por ventura também de O Antlcristo, de Nietzche, que inspirou por outro lado o papel do Filósofo — estas extensões surpreendentes tornam alguns passos de A DIVINA COMÉDIA particularmente brilhantes, como no diálogo entre Cristo e Adão, para o qual se deslocam algumas referências bíblicas que na realidade diziam respeito a Lázaro e a suas irmãs, personagens também significativas deste texto dramático de Manoel de Oliveira —, constitui uma espécie de debate de algumas poslções fundamentais, no que poderíamos chamar de uma visão do Mundo. Aliás, os personagens ("alienados") de Manoel de Oliveira, por assim dizer loucos na sua própria razão, são obviamente parciais, como por inerência da própria natureza humana, cada um obedecendo à lógica do próprio discurso que tipifica, um pouco como no final de Farenheit 451, de François Truffaut e Ray Bradbury, em que cada personagem resistente decorava um livro clássico passando a ser conhecido por esse nome.
Aliás, verdadeiramente, A DIVINA COMÉDIA é uma obra de resistência cultural, daí, porventura, o mal estar que provoca e a preguiça, que se estendeu infelizmente a uma boa parte da crítica portuguesa, de fazer um esforço suficiente para entender, para lá das modas de uma cultura massificada.
Precisamente porque lida com a parcialidade das personagens que recria e prolongando um sentido de objectividade que orienta Manoel de Oliveira na sua pesquisa documental, testemunha, mesmo quando lida com outros tempos, outros lugares e outras referências. Oliveira procura uma solução estética que realmente dê a melhor expressão às questões que o filme pretende colocar. Embora de uma maneira diferente, em A DIVINA COMÉDIA, com a câmara fixa e a atenção a alguns enquadramentos diríamos prévios á postura que neles determinada personagem vem encontrar. Manoel de Oliveira continua se quisermos, uma reflexão estética sobre o espaço off, que fica para além do ponto da vista — parcial — que a câmara nos pode oferecer. Em O Passado o Presente, quase de uma forma antagónica, a câmara fazia ousados movimentos enquanto a voz dos personagens se situava off, em Benilde a câmara, frequentemente dava atenção aos personagens que escutavam uma acção que se passava off, em Le Soulier de Satin a câmara também fixa apenas numa cena figurava o contracampo, em O Meu Caso, o ponto de vista da câmara era também frontal e a cada "repetição" apenas a óptica utilizada modificava slgnificativamente o enquadramento, sem esquecer o off que era a própria voz de Deus no episódio de Job.
De uma forma que tem alguns paralelos com as personagens do O Passado e o Presente, A DIVINA COMÉDIA organiza-se em oposições frequentemente duais remetendo para todo esse trabalho original e de investigação estética que Oliveira vem desenvolvendo sobre o campo-contracampo que constitui um elemento clássico da linguagem cinematográfica. Adão e Eva/Santa Teresa, o Filósofo e o Profeta, Sónia e Rasholnikov, Aliocha e Ivan, são exemplos de uma oposição quase impossível de resolver, mesmo quando estão condenados a aproximarem-se de uma forma complementar. Por outro lado Cristo, Lázaro e as irmãs, aproximam-se de um ponto de vista mais radical que de qualquer modo partilham com o Direclor — mas, significativamente Cristo é silenciado pelos enfermeiros protectores da ordem, Lázaro é mudo, a irmã Maria exprime-se quase unicamente através da música, e o Director, que se associa, triangulando, presidindo ao diálogo de Aliocha e Ivan (com a «lenda do grande inquisidor» de Os Irmãos Karamazov como referência do ponto de enunciação dos discursos absolutos), acaba por se enforcar, parecendo remeter a lucidez para os discursos parciais apesar da sua aparente loucura.
Aliás será interessante reparar melhor na importância capital da cena de Ivan e Aliocha na presença do Director. Por um lado, ela parece constituir um ponto de desequilíbrio dramático. Ivan é um personagem que vem de fora (numas dessas extensões hábeis de Oliveira, remetendo para o texto de Dostoievski) mas ele próprio pretende ser admitido na "casa de alienados", embora o seu "lema" tenha ainda um nível menos profundo de "incorporação" (ele lê um exercício escrito que fizera). Nessa cena o personagem é interpretado pelo próprio Manoel de Oliveira, em homenagem a Ruy Furtado, que desempenha o papel nas outras cenas e que morrera quando o filme não estava ainda concluído. Se quisermos, o discurso do director pode ser identificado ao do autor, e num outro plano ao de Deus, ou seja, de um ponto de vista off, que se situa do outro lado da morte, o que justificará aliás, o título de A DIVINA COMÉDIA. lsso explica talvez o suicídio do dlrector com o doloroso plano da própria morte, a um nível de representação interpretada ainda por Ruy Furtado. Oliveira, como em filmes anteriores, toca, de algum modo, o infilmável, se quisermos na substâncla íntima da noção de ressurreição, que no filme se figura também no personagem de Lázaro que se prolonga da cena necrópsica do José Augusto com o coração morto da amada em Francisca, do olhar por trás das ligaduras sobre a agonia do alferes de Non, e a dirigir-se provavelmente para o fim trágico de Camilo em O Dia do Desespero, filme que Manoel de Oliveira está agora a começar a rodar.
A vida é precisamente a incerteza dilemática da cada um dos personagens de A DIVINA COMÉDIA, que se resolve na fé, no compromisso, na incorporação a que se liga cada um dos textos. De certa maneira. a dlrecção de actores (ou para sermos mais claros, a sua própria escolha e a margem de liberdade que lhes é concedida) expressa isso mesmo, podendo dizer-se que Oliveira percorreu um longo ciclo do O Acto da Primavera a Os Canibais, onde trabalhou de forma extraordinárla a musicalidade das palavras e um outro sentido que não o do texto, passando pela ininteligibilidade de uma das "repetições" de O Meu Caso e pela "ópera" de Os Canibais, para agora em Non e A DIVINA COMÉDIA regressar a uma expressão mais natural, que retoma até a dicção, por exemplo, das crianças de Aniki-Bóbó. Nesse aspecto, e apesar da dificuldade do texto, A DIVINA COMEDIA beneficia de um leque excelente de interpretações, com realce para Maria de Medeiros (Sónia), Miguel Guilherme (Rasholnikov), Mário Viegas (filósofo) e Luís Miguel Cintra (profeta). Neste contexto o trabalho, ao nível da música, não deixa de ser significativo. Enquanto no ciclo anterior até Os Canibais, Oliveira recorreu à inspiração musical de João Paes valorizando um clima fantástico que, de certa forma "comenta" o universo de Oliveira, em Non a música do espanhol Alejandro Masso está mais próxima dos "standards" impressionistas e em A DIVINA COMÉDIA funciona de uma forma interior à acção, na personagem de Maria (Maria João Pires), quase permanentemente ao piano e inspirando um diálogo excelente entre o filósofo e o profeta, precisamente sobre o dilema da arte entre a sensualidade do corpo e o sopro do espírito.
A DIVINA COMÉDIA é um belíssimo filme de um dos mais importantes cineastas do nosso tempo. Atenção portugueses!
A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 19/10/1991


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