AINDA ESTOU AQUI - WALTER SALLES (2024)
- Antonio Roma Torres
- 6 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 16 de fev.
PARA QUE NÃO ESQUEÇA
António Roma Torres
A memória é um dos ingredientes do cinema. Este blog intitula-se Toda a Memória do Mundo não por acaso. É também uma homenagem a Alan Resnais e ao seu documentário sobre a Biblioteca Nacional Francesa, intitulado precisamente Toute la Memóire du Monde (1956). Toda a sua filmografia constitui, aliás, uma investigação sobre a memória e a imaginação e é mesmo objecto de algumas pesquisas académicas. Trabalho que na narrativa cinematográfica teve um peculiar desenvolvimento com o chamado flash-back que qualquer cinéfilo bem reconhece como um elemento fundamental entre a criação cinematográfica e a pretensão de filmar a mente, que outro cineasta francês, Florian Zeller, viria a considerar em O Pai. Mais do que nos livros de uma biblioteca, por mais completa que seja, talvez a memória da humanidade se assuma melhor como uma filmoteca.
Também não é por acaso que outro paradigma desta abordagem resnaisiana se encontra em Noite e Nevoeiro, referida explicitamente ao nazismo e às memórias dos campos de concentração, outro filme de Resnais, documentário, curto, também de 1956, ou seja, anterior a Hiroshima, Mon Amour (1959).
Mas em diferentes circunstâncias muitas vezes o cinema tenta responder mais directamente ao tempo político, numa perspectiva de intervenção que não aceita perder o contacto com o espectador menos motivado para fazer um esforço intelectual e mais movido pelas paixões imediatas da política, ou seja, usando sem remorsos os truques do melodrama, do thriller, ou de outras convenções dos géneros cinematográficos.
Ainda Estou Aqui do brasileiro Walter Salles, está aí em combate político numa época pós-bolsonarista procurando exorcizar um branqueamento dos crimes da ditadura brasileira que se levantou com uma nostalgia amnésica que faz esperar novos messias (não por acaso o nome do meio de Jair Messias Bolsonaro) como solução de alguns impasses dos tempos modernos, e a sua pretensão acima de tudo é ser eficaz.
O filme baseia-se na história de Rubens Paiva (Selton Mello), antigo deputado do Partido Trabalhista, “desaparecido político” em 1971, no período mais duro da longa ditadura militar (1964-1985), correspondente à presidência do General Médici, todavia contada com emoção e até alguma doçura num nível familiar, pelos olhos da mulher, Eunice (numa extraordinária interpretação de Fernanda Torres, e depois no final da sua mãe Fernanda Montenegro, muito festejada no passado pela sua interpretação no, mais próximo das classes populares, Central do Brasil, também de Walter Salles) que procura de início descobrir o seu paradeiro e depois a declaração da sua morte à mão dos torcionários do regime, o que só conseguiria 25 anos depois em 1996 já na presidência democrática de Fernando Henrique Cardoso, na realidade a partir do livro homónimo em que o argumento está baseado, escrito pelo filho Marcelo Rubens Paiva (Guilherme Silveira, e depois Antonio Saboia), único elemento masculino numa fratria de cinco, e tetraplégico após um acidente aos vinte anos de idade (este é um dado da realidade que o filme não oculta nomeadamente na cena do lançamento do seu primeiro livro Feliz Ano Velho, mas surpreendentemente também não explica), e portanto a vários títulos resistente aos infortúnios da vida.
Walter Salles conheceu a família Paiva real quando tinha 13 anos e esse é um dado que acresce a justificar a extraordinária empatia que se estabelece em todo o retrato desta família, muito visivelmente feliz, parecendo viver no melhor dos mundos, numa bolha de classe e intelectual apesar de opositora à ditadura, até à brutalidade que se abate sobre ela.
Depois de ter dirigido alguns filmes de televisão, Walter Salles afirmou-se com Terra Estrangeira (1995), uma co-produção luso-brasileira, rodada em Portugal a preto-e-branco e retratando o instável ambiente da presidência de Collor de Mello que levava muitos cidadãos a sair do Brasil, para depois experimentar um largo sucesso entre nós com Central do Brasil (1998), nomeado para o oscar do melhor filme estrangeiro (que foi para A Vida é Bela, também premiado com a melhor interpretação masculina de Roberto Benigni, actor e realizador), e Diários de Che Guevara (2004), mostrando já uma grande segurança na humanidade dos retratos, mesmo num Guevara ainda recém-licenciado em Medicina e percorrendo o continente sul-americano de mota com um amigo.
O retrato inicial da família Paiva, durante a época de Natal, que é verão no Rio de Janeiro, mostra um quotidiano simples da felicidade do grupo que só a espaços se dá conta das sombras da ditadura (helicópteros e forças militares no horizonte), mostrando a frescura e a ternura que Walter Salles já tinha emprestado ao périplo dos dois jovens argentinos na sua viagem pelos países sul-americanos antes da opção pela via armada. É um retrato sobretudo juvenil, com evidência da música e cultura da época, tirando fotografias que hão-de mais tarde nas horas de amargura recordar as longas tardes passadas na praia junto à moradia no sofisticado bairro do Leblon.
Este optimismo perdura mesmo nos momentos de aflição talvez com excepção das semanas de prisão e isolamento ainda sem saber do desenlace trágico da prisão do marido de Eunice. Este espírito que percorre todo o filme traduz, muito assente na excelente interpretação de Fernanda Torres, a atitude de resistência e sobrevivência e ao mesmo tempo de uma nova autonomia pessoal que extravasa a própria protecção da família: Eunice forma-se em Direito e faz um trabalho social e político de apoio à população indígena do Brasil.
O epílogo do filme é notável ao repor a função da própria memória. Eunice termina os seus dias sofrendo da doença de Alzheimer numa aparente passividade e ausência, sem falar e presa a uma cadeira de rodas num almoço que reúne toda a família. Eunice, agora na presença poderosa da actriz-mãe, Fernanda Montenegro, observa toda a família num ambíguo alheamento que é também um misto de serenidade e projecção na família de novas gerações que criou, apenas se comove, não sendo observada, vendo na televisão uma notícia retrospectiva do caso Rubens Paiva, e depois posa com toda a família para uma nova fotografia que é tanto uma imagem do futuro como uma impressão do passado que naturalmente toca profundamente o trabalho do próprio cinema como arte nobre, em que intervém o que na sociedade também cabe ao papel da fotografia e da televisão, a que Walter Salles com simplicidade empresta um testemunho de enorme talento.


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