ANORA - SEAN BAKER (2024)
- António Roma Torres
- 2 de dez. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 3 de mar.
VÊM AÍ OS RUSSOS!
António Roma Torres
Anora de Sean Baker ganhou este ano a Palma de Ouro do Festival de Cannes. O seu filme anterior, Red Rocket, ainda inédito em Portugal, estivera também em competição em Cannes, em 2021, mas o seu êxito maior tinha sido o ainda anterior The Florida Project, um filme que abordava “o princípio da incerteza e o pensamento complexo" numa zona próxima do Disney World em Orlando, Florida, acompanhando uma mãe e uma filha de seis anos, vivendo com poucas regras, expostas ao abuso sexual, que um temerário responsável de um motel vai proteger, numa notável interpretação de Willem Dafoe, nomeado aliás para o oscar da interpretação secundária. O Florida Project a que o filme aludia era o nome com que foi anunciado o primeiro parque da Disney em 1965, de que é um sinal no filme o já deteriorado motel, e não, como se poderia esperar dada a temática, qualquer eventual projecto social de protecção de menores. Aliás o Disney World seria o objecto de um brilhante plano-sequência final, filmado com um smartphone, imagem de marca da cultura do cinema independente novaiorquino em que Sean Baker foi formado.
Uma Palma de Ouro em Cannes não é tão rara no cinema norte-americano quanto se poderia supor. Os Estados Unidos é mesmo o país com mais Palmas de Ouro ou Grand Prix (como se chamou entre 1946 e 1954 e 1964 e 1974), a seguir à França a jogar em casa evidentemente, desde que o Festival institui o prémio, tendo até atribuído uma Palma de Ouro simbólica em 1939, data inicial frustrada pelo início da II Guerra Mundial, votada em 2002 entre os filmes que haviam sido selecionados, a Union Pacific/Aliança de Aço, do mítico, mas evidentemente bem comercial, Cecil B. de Mille.
A fasquia estava, portanto, alta e Anora despertou grande expectativa, não tendo, porém, atingido o nível que The Florida Project prometera.
Comédia romântica, desta vez passada em Nova Iorque, o filme tem um ritmo e uma habilidade técnica notáveis, com uma desembaraçada câmara à mão e evitamento sistemático dos mais formais campo-contra-campo, mas às vezes ganha o espectador mais pela exibição dessa perícia, do que pela consistência no plano temático.
Daí as constantes evocações de Pretty Woman: Um Sonho de Mulher, do mediano Garry Marshall, com Julia Roberts, que de certa maneira apoucaram Anora, quando haveria outra comparação, que seria mais óbvia, com Vêm aí os Russos, Vêm aí os Russos! de Norman Jewison, e introducing Alan Arkin, que em 1966 procurava satirizar a distensão da “guerra fria” pós-crise dos mísseis de Cuba, como agora o retrato de uma mafia russa em larga movimentação invasiva na América parece ser o complemento na função que se pede ao cinema, agora num momento de tensão numa guerra híbrida centro-europeia.
Mas o que definitivamente ganha o filme é a magnífica interpretação de Mickey Madison, que promete dar brado nas nomeações para o oscar, no papel de Anora, nicknamed Ani, a que Mark Eydelshteyn todavia no papel de Vanya acaba por não conseguir dar uma réplica à altura.
Vanya é um estróina perdido nas atracções fúteis de um sonho capitalista americano, controlado à distância por uma mãe russa, Galina (Darya Ekamazova), que parece querer corporizar a própria Mãe Rússia, e um pai oligarca, Nikolai (Aleksei Serebryakov), que por trás de uma compleição atlética disfarça mal uma irresistível vontade de rir, representados no meio americano por um trio de rufias mal-amanhados, Toros (Karren Karagulian), o padrinho que abandona uma cerimónia religiosa para cumprir a sua missão salvadora junto do jovem russo extraviado, coadjuvado por Garnick (Vache Tovmasyan) e Igor (Yura Borisov), nos braços do qual Anora está prestes a cair quando o filme acaba.
Anora, no retrato que Baker e Madison pretendem fazer, não é uma cândida cinderela apenas a cumprir o papel estereotipado que lhe competiria, antes parece uma mulher independente num meio em que, em todo o caso, ninguém pode deixar os créditos por mão alheia, stripper, trabalhadora do sexo, mas sempre não aceitando ser chamada de prostituta, antes conservando a dose de sonho, utopia ou inocência, que lhe permita algum travo de felicidade numa sociedade despudoradamente agressiva. Ou simplesmente sobreviver aos sonhos enterrados nos casamentos de Las Vegas.
Escrevo este texto em 2 de Dezembro, dia em que mais logo se conhecerão os Gotham Awards, anunciados como os first film awards of the season, e de olho no cinema independente em Nova York. Veremos se Madison e Baker poderão anunciar a lufada de ar fresco que possa animar o cinema americano, ainda a recuperar de uma anemia prolongada.
Nota 1 [3/12/2024, 8:26] - Anora tinha-se destacado com o maior número de nomeações (4) mas não teve qualquer prémio na Gala dos Gotham Independent Film Awards 2024.
Nota 2 (3/3/2025) - Depois de uma inusual dispersão dos prémios congéneres ao longo destes três meses acabou como filme com maior número de oscars, cinco, como melhor filme, melhores argumento original, montagem e realização (todos pessoais para Sean Baker) e melhor actriz para Mickey Madison.
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