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Francisca - Manoel De Oliveira (1981)

  • 24 de jun. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 5 de jan.

A OBSCENIDADE DO AMOR 

 

É conhecida a posição de Francisca na obra de Manoel de Oliveira. Concluída com Amor de Perdição uma trilogia de amores frustrados segundo as declarações do próprio realizador, Manoel de Oliveira pensava regressar a um texto de Vicente Sanches, o autor da peça em que se baseava o primeiro filme desse conjunto, O Passado e o Presente. Um desacordo entre o cineasta e o dramaturgo inviabilizou o projecto de O negro e o preto, aliás classificado por Vicente Sanches como "uma peça (de cinema)", cuja inspiração na "advertência" inicial se atribui ao próprio Ma­noel de Oliveira. Entretanto as atenções de Manoel de Oliveira voltam-se para Fanny Owen, romance de Agustina Bessa Luís, curiosamente também nascido como projecto cinematográfico, suponho que alheio a Manoel de Oíiveira. Agustina reconstruíra no seu livro uma história verídica de que Camilo Castelo Branco, o romancista de Amor de Perdição, fora uma testemunha privilegiada ou mesmo um perso­nagem central, a ela se referindo inclusivamente em Bom Jesus do Monte. Manoel de Oliveira trabalhou o argumento de Francisca precisa­mente a partir do romance de Agustina Bessa Luís, num período extremamente breve e o re­sultado é o último capitulo do que passou a ser considerada uma tetralogia (poder-se-á dizer agora acabada?).


Esta introdução é relevante porque mostra bem como se tem construído a filmografia de Manoel de Oliveira, cineasta que aos setenta anos evidencia uma espantosa criatividade, aliás, só tardiamente desenvolvida em pleno. Cada obra parece ser um ponto de chegada, a conclusão de um percurso elaborando um discurso não apenas sobre o cinema e as suas opções essenciais, mas sobre a sua pró­pria filmografia, afinal sempre paradoxalmente inacabada, e até regressando frequente­mente aos mesmos temas, às mesmas questões, às mesmas fontes do Inspiração. É como se se tratasse da contínua procura de um sentido que se vai explicitando em eta­pas sucessivas. O Passado e o Presente, por exemplo, enriquecia a sua leitura nos contrastes e nos paralelos com O Acto da Primavera como notamos na análise publicada em Cinema Português Ano Gulbenkian (Ed. Afrontamento). Benilde ou a Virgem Mãe e Amor de Perdição são passos sucessivos em que se abandona a ironia mais critica e progressivamente se afirma uma descrição da paixão idealizada, mas radical, própria da ju­ventude (daí os personagens mal saídos da adolescência que retomam aliás o sentido da cena final de O Passado e o Presente), polarizada nas alternativas extremas da loucura ou da morte (como repete Raquel a José Au­gusto nos diálogos de Francisca: "A tua única salvação é a loucura").


Francisca foi recebido internacionalmente com o coro de aplausos que o consolidado prestigio de Manoel de Oliveira já indiscutivel­mente impõe, e desta vez pode dizer-se que o acolhimento interno não ficou atrás. O filme, aliás, é no panorama do cinema mundial uma obra particularmente moderna que reencontra o romantismo como vem sendo revalorizado no cinema recente de grandes autores e, por outro lado, prolonga a reflexão sobre o cinema como um relato não naturalista, no entanto com um raro sentido da beleza e do encanto que os paladinos de um cinema de desconstrução geral­mente não possuem.


Tal como Amor de Perdição nos propunha o amor como um texto e investia o discurso literário no nível do testemunho vivencial. tam­bém Francisca não é apenas um estudo so­bre as representações, mas é ainda a afirmação da impossibilidade de representar o amor. Esse é aliás o sentido da excelente cena, quase no final, entre José Augusto e a criada repetida, numa curiosa desmontagem do campo-contracampo que retoma o uso do espaço off de Benilde e acentua propositadamente a sua identificação como sequência-chave. "O que é que se passa quando dizemos que amamos al­guém?" - interroga-se José Augusto perante o corarão sem vida de Teresa. O olhar necrópsico é apenas um referente, a mediação possível, ou, pervertendo um passo do diálogo do filme, a probabilidade escassa de encontrar o desejo nas cinzas, ou a paixão na consciência. Se, como diz Roland Barthes, "o amor é hoje em dia obsceno, não o sexo" (Fragmentos de um Discurso Amoroso), Francisca é a demonstra­ção extrema dessa obscenidade, literalmente dessa impossibilidade de o pôr em cena, no cinema como na vida. A tentação de José Au­gusto, a sua irresistível vertigem da morte, é também um certo gosto pela representação, fa­zendo dos amigos que consulta de certa maneira espectadores. Ao contrário, Camilo é o exemplo, tomado no próprio diálogo com Raquel, da lou­cura a que a criação artística dá acesso na sua convivência com um simbólico que recobre o real e o permite em certo sentido manejar. A consumação sexual, ausente no itinerário amo­roso dos jovens de que Manoel de Oliveira se ocupa, seria o momento de uma intimidade em absoluto impossível de representar, a não ser de uma forma desviada que pode ser a liturgia em O Passado e o Presente ou a loucura em Benilde ou a morte (com o significativo abraço suicidário de Mariana) em Amor de Per­dição, mas sempre sendo visível a presença de "outros", naturalmente inoportunos especta­dores sinalizados mesmo por um diferente re­gisto de interpretações (personagens mudos em O Passado e o Presente, actores profissionais em Benilde e Amor de Perdição).


Francisca mais que um epílogo natural é assim a síntese condensada dessa (portanto ainda) trilogia de "amores funestos", tanto na linha temática quanto na forma expressiva em que se retomam e associam as experiências dos filmes anteriores.

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 13/12/1981

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