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GRAND TOUR - MIGUEL GOMES (2024)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • 29 de nov. de 2024
  • 5 min de leitura

MAGIA E DESORIENTAÇÃO

António Roma Torres

 

Há Oriente na palavra desorientação. O cinema de Miguel Gomes, a cada novo filme, parece querer dar passos sucessivos num projecto que exerce sobre o espectador um efeito, ao mesmo tempo, de sedução e indeterminação, com o seu quê de mágico, quiçá hipnótico, próprio do cinema como artifício de imagens em movimento.


Aliás, parece ser o mesmo efeito que mutuamente se determina entre o casal protagonista, ele, Edward (Gonçalo Waddington), fugindo e aparentemente continuando a atrair a noiva, e ela Molly (Crista Alfaiate), não desistindo do jogo que pode ser o próprio casamento que não alcança - e é supostamente extraído de duas páginas laterais de Um Gentleman na Ásia de Somerset Maugham, como o anterior Diários de Otsoga, recordemos, escondia e mostrava uma suposta inspiração em Cesare Pavese. São, se soubermos ler o paradoxo, verdadeiras falsas pistas, que antes poderiam supor a Xerazade de As Mil e Uma Noites, e mesmo, mais distantes, a inicial cegada, supostamente infantil, de A Cara que Mereces, ou as romarias de verão de Aquele Querido Mês de Agosto.


E, no entanto, o seu filme anterior que mais directamente se poderia associar a este Grand Tour, parece ser, pelo preto e branco, construção em díptico, memória colonial, etc., Tabu, premiado no Festival de Berlim de 2012, como agora o presente filme valeu, doze anos depois, o prémio de melhor realizador no Festival de Cannes.


A realidade que Miguel Gomes filma, em todo o caso, é sempre o próprio cinema, e o cinema é, ainda e sempre, mesmo na era digital, a lanterna mágica. Por isso a magia do filme redobra o tempo, primeiro a viagem dele que foge, depois a dela que o persegue, e com o desfasamento do tempo que transforma o espaço numa visão binocular que apenas o cinema oferece.


Há como que também um efeito hipnótico que a simultânea estranheza do Oriente a momentos potencia ou compensa. De certa maneira há apenas o cinema, como se não houvesse realidade, numa dimensão que é por natureza nova, porque inventada e profundamente humana. A tecnologia prende e liberta e o constante movimento faz o resto, como a grande roda movida agora a esforço humano que reaparece em Myanmar, mas não deixa de evocar o próprio realizador, Miguel Gomes, frente à câmara de turbante, num outro plano de As Mil Uma Noites – Volume 3 O Encantado.

 

Mas na realidade há três viagens em Grand Tour.


A equipa técnica filmou e os argumentistas procuraram inspiração em imagens documentais (até no sentido de documentos preparatórios) filmadas numa viagem pelos locais previamente pesquisados sucessivamente na Birmânia (Rangum), Singapura, Tailândia (Banguecoque), Vietname (Saigão), Filipinas (Manila), Japão (Osaka) e China (Xangai e Tibete), com direcção de fotografia do tailandês  Sayombhu Mukdeeprom, colaborador do também asiático  Apichatpong Weerasethakul e mais recentemente do italiano Luca Guadagnino, além de ter cumprido essa função também no anterior As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes, com excepção do percurso chinês dirigido à distância, já em pleno Covid que fechou as fronteiras da China, com direcção de fotografia de Guo Liang.


As outras duas viagens, de ficção, a preto e branco, de Edward e Molly foram dirigidas em estúdio em Roma, com direcção de fotografia de Rui Poças, já colaborador dos anteriores filmes de Miguel Gomes, A Cara que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto e Tabu.


Neste percurso a voz, em cena ou em narração off, ganha alguma dissonância que de certa maneira distancia o espectador, porquanto os personagens protagonistas são ingleses mas falam português, sendo a narração nas várias línguas locais, legendadas em português, ou incluindo por  vezes nas cenas locais um paradoxal português soletrado como logo de entrada no príncipe de Banguecoque, sendo que o inglês funciona no cinema corrente como o esperanto assumido que todo o mundo fala independentemente da localidade, que aliás frequentemente na produção euro-americana é o estúdio.


A música por seu lado parece universal, o que muitas vezes quer dizer standards de todo o lado, ou lados nenhuns, como a valsa Danúbio Azul de Strauss, ou Di Quella Pira de Il Trovatore de Verdi, ou uma marcha da banda da marinha de John Philip de Sousa ou hits da Old Band Jazz ou os célebres êxitos internacionais My Way ou Beyond the Sea ou Amor, amor de Gabriel Ruiz Galindo, muito jazz meets Broadway de Viva a Folia! (Roy del Ruth, 1944).


Nesta mistura multicultural ganha um certo peso uma galeria de actores de composição que o cinema português tem vindo a valorizar: Cláudio Silva, no Timothy Sanders, pretendente rico fascinado pela determinação de Molly (“a sua certeza inabalável aconselha-me a não a pedir em casamento, mas a admiração pelos seus princípios impele-me a não deixar de o fazer”); Diogo Dória, no major Brown estupefacto perante a conversa no camarote do comandante do navio; João Pedro Bénard, no cônsul Horace Seagrave que toca guqin e explica as subtilezas dos caracteres orientais com a distância cultural que reconhece enquanto funcionário colonial (“o fim do império é inevitável mas vamos sair daqui sem ter percebido nada, odeio o trabalho mas amo este país”), João Pedro Vaz, no reverendo Carpenter que abandona a missão mas decide inverter a viagem no rio para seguir o ímpeto de Molly (“em verdade vos digo…tinha confiado a alma ao Senhor, mas agora que me fala assim decido transferir para si essa responsabilidade”).


Da mesma forma no lado feminino as personagens são marcantes, mas aí parece imperar o espírito autóctone da vietnamita  Lang Khê Tran, na devotada Ngoc, com um contrastante toque francês, enquanto, Teresa Madruga, na espia assertiva (“sabemos quem é, será que nos pode esclarecer o que veio cá fazer ou a sua ligação com a USA Navy , não o queremos aqui, vamos escoltá-lo até ao navio que vai para Xangai”) ou Joana Bárcia, na Lady Dragon que sobrevive ao contratempo do comboio descarrilado confessando encontrar-se ali por não suportar a ilha britânica (“mas aqui não é muito melhor a maior parte do tempo”), exibem uma irónica distância.


O filme porém deixa-se contaminar por ritmos diversos, do lento carrocel de motas numa rotunda ao silêncio dos monges em um mosteiro distante onde a correspondência parece não chegar, e vozes e sussurros contavam coisas horríveis numa língua indistinta, ou euforias e ressacas em cidades de prédios altos atravessados por comboios ou onde uma sacerdotisa dos bons conselhos pode revelar um destino que impõe uma saída intempestiva, tudo parecendo um jogo de marionetas ou um mah-jong que combina habilmente a sorte e a paciência.


O filme de Miguel Gomes é brilhante e misterioso fazendo jus a um fascínio pelo Oriente, que a literatura já percorreu no domínio de uma fantasia distante em Eça de Queirós (O Mandarim) ou Miguel Torga (O Senhor Ventura) e o cinema português das diferentes gerações já conheceu também de tão diversos modos em Paulo Rocha (A Ilha dos Amores), Luís Filipe Rocha (Amor e Dedinhos dos Pés), João Botelho (Peregrinação), João Mário Grilo (Os Olhos da Ásia), Cláudia Varejão (Ama-Sen) até mais recentemente Leonor Teles (Baan) e onde sempre o sonho e a fantasia parecem superar a realidade.

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