MEGALOPOLIS - FRANCIS FORD COPPOLA (2024)
- 28 de nov. de 2024
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Atualizado: 26 de dez. de 2024
CÉSAR E CÍCERO
António Roma Torres
Megalopolis, o último filme de Francis Ford Coppola, depois de uma demora de quarenta anos desde que germinou na sua imaginação (um dos adiamentos ocorreu depois do ataque às Torres Gémeas em 2001, por ter sido considerado de mau gosto abordar o tema nessa circunstância trágica que se abateu sobre a cidade), passa-se numa Nova Iorque, futurista, que por várias vezes evoca os traços do cinema dos anos 1920-1930 de Fritz Lang, e especialmente o seu Metropolis, mas passa-se num futuro próximo em que a grande cidade-metrópole se chama Nova Roma e evoca Cícero e César, sucessivamente cônsules da República de Roma, nos nomes dos dois protagonistas principais, Frank Cícero (Gianfranco Esposito) e César Catilina (Adam Driver), o primeiro o mayor da cidade e supostamente defensor da ordem estabelecida, e o segundo, um arquitecto, construtor de uma nova cidade, até de um novo mundo, numa vertente irremediavelmente destrutora como mostra logo uma das primeiras sequências, na demolição de um grande edifício, orquestrada, se assim se pode dizer, pelo arquitecto.
César e Cícero são normalmente considerados dois personagens antagónicos, inserindo-se em grupos diferentes no Senado da República de Roma, embora provavelmente sem o grau de organização que hoje atribuímos a um partido político, os populares que se preocupavam com o futuro, o que desejavam que o estado fosse, e os optimates que se ocupavam mais das leis que permitiam que o estado funcionasse.
Coppola neste filme desmesurado, onde parece pretender colocar todas as questões de uma vida, principalmente no plano social e político, fazendo mais um cinema de ensaio que um filme dramático ou um filme narrativo, como os conhecemos principalmente na produção norte-americana, opta por uma outra via que não ignora que César e Cícero pertenciam ao pequeno número dos romanos que sabiam falar grego e o entendiam como um idioma mais apetrechado para abordar as questões mais profundas, e que houve pontos de aproximação que estão documentados, na constituição do Primeiro Triunvirato a que Cícero, convidado por César, recusou pertencer, ou no regresso de Cícero a Brindisi em Itália, e encontro com César depois da fracassada expedição de Pompeu no Egipto, após a derrota contra César em Farsalos – eu próprio, aqui há anos, abordei o tema numa peça de teatro que escrevi (César e Cícero, Afrontamento, 2016).
Repare-se, no entanto, que há alguma ambiguidade na escolha que Coppola fez dos nomes dos seus personagens – o arquitecto é César de nome próprio, mas já o apelido é Catilina, derrotado por Cícero na eleição de cônsul de 63 aC, e conjurado denunciado por ele no Senado depois, até ser morto em batalha na Etrúria por um exército às ordens do outro cônsul, Caio António Híbrida (o filme não se esquece de citar a frase célebre de Cícero no Senado: “até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?”); por outro lado o mayor é Cícero de apelido, mas já o nome próprio é Frank, de Sinatra, o cantor-actor sempre suspeito de ligações à Mafia que o cineasta explorara num dos fios laterais da narrativa de O Padrinho (1972), mas também do seu nome próprio, Francis, como o filme explica claramente.
O espectador pode, portanto, suspeitar que esta primeira oposição César-Frank afasta-se das óbvias alusões políticas do filme, para espelhar o dilema pessoal de Coppola em toda uma vida, entre o autor, cineasta-artista (“arquitecto”) e revolucionário (literalmente dinamitando a cidade enquanto metáfora da polis) mas no fundo falido ou impotente, e o produtor, homem de negócios na indústria do cinema ou na vertente vinícola em Napa Valley, Califórnia, poderoso e obviamente bem sucedido. Foram aliás os vinhos que pagaram Megalopolis, onde Coppola investiu dinheiro próprio, depois de em parte considerável da sua filmografia ter trabalhado no cinema para saldar as dívidas contraídas com Apocalypse Now (1979) – recorde-se, a propósito, O Estado das Coisas de Wim Wenders, rodado em Portugal com menos dinheiro, onde o cineasta alemão ajusta contas dos conflitos com Coppola na rodagem de Hammett, Detective Privado nos Estados Unidos sob a égide da Zoetrope.
Mas há outro plano, mais formal, ou se quisermos estético, em que Megalopolis se destaca. Coppola mantém-se como um dos raros visionários, sempre experimental e vivo nos seus processos criativos, equiparável a outros génios da história do cinema de quem se podia esperar o inesperado, como Eisenstein, Welles ou Kubrick, e talvez Hitchcock ou Godard, de quem se poderia dizer como Pudovkine de Kuleshov: “nós fazemos filmes, mas ele fez a cinematografia” (referia-se, é certo, à linguagem ou gramática do cinema e não a mais amplas inovações estéticas, mas era o tempo de então). Coppola parece ter uma aguda noção da sua singularidade ao dizer ironicamente em entrevista a Vasco Câmara no Público: “Sou um realizador de segunda. Mas, como realizador de segunda, sou de primeira”.
Na realidade Megalopolis recusa os modelos narrativos ou dramáticos tornados convencionais no cinema, mesmo para lá de Hollywood, e ao mesmo tempo também não se reduz ao teatro mesmo se tem sempre uma aguda consciência de um palco que pode ser o do cinema musical, a recordar o seu precoce O Vale do Arco-Íris (1968) em algumas cenas enfeitiçadas por Oz, ou melhor ainda o inigualável Do Fundo do Coração (1981), mas paira em muitos outros exemplos do seu cinema, como Cotton Club (1984), Peggy Sue Casou-se (1986), Tucker o Homem e o Seu Sonho (1988), Life Without Zoe (1989), de Histórias em New York , ou Drácula de Bram Stoker (1992), porém sem se deixar facilmente acantonar no chamado cinema de género, como aconteceu muito especialmente no operático O Padrinho III (1990) que todavia não conseguiu o sucesso de O Padrinho II (1974), seu único oscar de realização, ou também no seu projecto de cinema ao vivo.
Para Coppola o cinema parece ser uma via de acesso à fantasia mais do que um privilegiado retrato da realidade e Megalopolis deleita-se em momentos circenses onde mesmo temos uma corrida de quadrigas a evocar os dois Ben-Hur do cinema, no constante espectáculo em ritmo alucinante que nada parece conseguir parar (“quando o coliseu cair, Roma e o mundo cairão também”). Mas ao mesmo tempo interroga-se sobre o momento em que parece poder perceber-se que o império (agora americano) vai cair, como caíram outros antes. Mas o que sobreviverá talvez seja arte, mesmo quando trasvestida de grande espectáculo (como não recordar as espantosas coreografias dirigidas por cineastas em aberturas das Olimpíadas ou dos Mundiais de Futebol?) e em particular o cinema onde a imagem pode parar o movimento suicida do arquitecto que aparentemente tem o mundo a seus pés (evocando agora o citizen Kane em tradução portuguesa por uma vez numa adaptação lógica e inteligente).
Megalopolis tira partido ainda de muitos personagens secundários, como o par do filme oscarizado do britânico John Schelesinger, O Cowboy da Meia Noite: John Voight, excelente na pontuação capitalista do império em compulsão de permanente expansão, no velho Crasso, o homem mais rico do império romano e que como general deu origem, em campo de batalha, ao erro que leva o seu nome para a eternidade; e Dustin Hoffman, menos tempo em jogo porque parece uma carta fora do baralho, “The Fixer”, que parece o inverso do Joker perverso de Gotham City que o filme a muitos títulos não deixa de sugerir, (in)capaz de reparar todos os azares do percurso alucinante que o filme propõe e por isso talvez a caminhar para um progressivo eclipse. Mas há ainda, na entourage de Crasso, um personagem mais disruptivo, ainda com ecos da República de Roma, Clódio Pulcher ou Pulcro, que fora tribuno da plebe, interpretado por Shia la Boeuf com grande vitalidade, quase histriónico, a lembrar o Mottor Cicle Boy (Mickey Rourke) em Juventude Inquieta (1983) de Coppola.
A galeria de personagens femininas é dominada por Júlia, filha do mayor Cícero - note-se que em Roma era Túlia, a filha de Cícero, e Júlia, a de César -, numa complexa interpretação de Nathalie Emanuel, entrelaçando subtilmente os mundos separados de César e Cícero, enquanto Wow Platinum, na pele de Aubrey Plaza, parece ser o factor exterior à Roma Antiga, com o glamour de Hollywood que compõe convenientemente algo de muito moderno na mistura omnipresente da notícia e do espectáculo, em quase ininterruptas noites de gala (“economics, journalism and sex-appeal”).
Com alguma ironia, e um toque paradoxal de actualidade, o filme é pontuado por um satélite soviético perdido no espaço, capaz de a todo o momento entrar na atmosfera como uma arma nuclear vinda do passado. Mas o mais interessante numa montagem com um certo carácter inacabado, é o apelo à natalidade de uma criança que nasce no final e dá futuro ao pacto privado de César e Cícero (“embora não entenda o que estás a fazer, vou apoiar-te”, diz Cícero).
Mas na encenação como espectáculo total e permanente que o filme privilegia, muito diferente, por exemplo, de uma outra reflexão de fim de carreira que foi Tetro (2009), é ténue a fronteira entre o privado e o público, podendo o espectador interrogar-se se esta aparente arbitrariedade narrativa não acolhe algum pensamento filosófico de Arendt, Bakhtin ou Benjamin que associe o existencial ao pós-moderno.
O desafio de Coppola com as referências à mulher de César, “a que não basta ser honesta, mas precisa parecê-lo” (e Coppola dedica o filme à sua própria mulher, Eleanor, acabada de morrer), e a descoberta do megalon, matéria mágica e eterna para a nova construção, empurra-o para uma catadupa de citações, porventura mal transcritas ou mal atribuídas ironiza o filme, assumidamente megalómano (“descobri o princípio da megalomania ao salvar a vida dela”). E cita Ralph Waldo Emerson sobre a civilização que nos matará, e mais adiante Rousseau, Petrarca e Marco Aurélio até descobrir uma caixa com a “pandora de sete letras que é vingança dos deuses contra os homens”, “que nasceram com a opção de serem o que querem ser e podem”, “feitos da mesma matéria que os sonhos” (Shakespeare).
Porque “o tempo é uma coisa estranha e não pára”, mas “a arte pára o tempo”, quase adivinho Coppola a dar-nos novas versões re-editadas de Megalopolis, qual apocalipse agora e sempre, assim o destino lhe dê vida e saúde.
O seu mundo de monstros que, desde Dementia 13 (1963), lhe moldou o gosto pelo cinema de terror, permite-lhe saber que “se fingirmos ser bons o mundo não nos leva a sério” (ironia ou citação apócrifa de Trump?), por isso resta-nos “saltarmos para o desconhecido e provarmos que somos livres”.
You're not a big boy yet, Francis.
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