O ATENTADO DE 5 DE SETEMBRO - TIM FEHLBAUM (2024)
- Antonio Roma Torres
- 25 de fev.
- 5 min de leitura
TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO
António Roma Torres
Este foi um título que valeu sete oscars em 2023, num filme desequilibrado e pouca coincidência com os outros prémios congéneres no mesmo ano como costumava ser o habitual. Mas mesmo sem admitir o mundo multiverso que se propunha, de certa maneira ficou a valer como lema principal de uma percepção do novo mundo que se nos oferece, principalmente na realidade audiovisual que progressivamente se foi concretizando.
O Atentado de 5 de Setembro toma um evento decorrido há mais de cinquenta anos, o ataque terrorista de um grupo palestiniano que culminou com o assassinato de 11 atletas da equipa israelita nos Jogos Olímpicos de 1972 em Munique, para principalmente nos mostrar toda a acção vista a partir dos estúdios da estação televisiva norte-americana ABC News onde os jornalistas desportivos vão fazer a reportagem da ocorrência de relevância política fora do âmbito do seu trabalho habitual, por os seus estúdios serem os mais próximos do alojamento dos atletas israelitas na aldeia olímpica.
As 17 horas em que todo o mundo pôde acompanhar em directo os acontecimentos inauguraram uma nova mundividência da humanidade por ser a primeira vez que uma transmissão por satélite permitia o acompanhamento em simultâneo das provas desportivas, e por extensão os embates que a actualidade política podia incorporar, no caso mostrando uma guerra política que em vários planos extravasava as regras convencionais e podia de repente assumir uma violência sangrenta extraordinária patente aos olhos de todo o mundo, ampliando por seu lado de uma forma inaudita os próprios objectivos terroristas que desde então se mantiveram na ordem do dia, embora a operação não visasse apenas um efeito proclamatório já que o grupo Setembro Negro responsável pela agressão, que ao mesmo tempo violava a natureza pacifista que sempre presidira aos próprios jogos desportivos, pretendia também a libertação de um grande número de prisioneiros palestinianos detidos nas prisões do estado de Israel.
O tema por outro lado é surpreendentemente actual, embora a rodagem do filme tenha sido anterior ao 7 de Outubro de 2023, data da mais ampla operação do Hamas que resultou igualmente numa tomada de reféns israelitas por um grupo terrorista palestiniano.
Mas o filme inteligentemente expõe logo nos diálogos iniciais todo um contexto histórico que é ainda o do final da II Guerra Mundial e da ordem política internacional que daí resultou, temática que regressou de novo à ordem do dia apesar do meio século já passado depois da guerra.
De facto, são trazidas ao quotidiano das conversas as memórias traumáticas do Holocausto ainda próximo, os próprios objectivos de reabilitação da imagem alemã no pós-guerra, realizando umas Olimpíadas que se poderiam contrapor às que ocorreram em Berlim em 1936 em plena ascensão hitleriana, e ao mesmo tempo a paradoxal ineficácia da segurança da ordem policial alemã, e o trauma de uma nação dividida em dois estados como consequência da Guerra Fria que ainda duraria mais duas décadas.
Mas tudo isso não deixa que se perca a extrema eficácia narrativa de um thriller que concentra toda uma multiplicidade de acções e reflexões no pequeno espaço de uma régie de estúdio televisivo e dos seus prolongamentos adjacentes e na febre de uma operação tensa onde os minutos contam e o desastre pode estar iminente.
Tudo se passa, no entanto, numa espécie de sala de observações que é a essência do olhar jornalístico, que um artigo de Geoffrey Macnab no Screen Daily curiosamente compara ao paradigmático Das Boot – A Odisseia do Submarino 96 (1981) do também alemão Wolfgang Petersen, que implica uma distância, não necessariamente em profundidade oceânica, mas também não descomprometida ou neutral, como é da essência, aliás, da plateia desportiva.
As interrogações éticas correspondem ao efeito, com o consequente feed-back sobre a realidade, que a dada altura surge na consciência de que os sequestradores podem estar a ver as imagens da tentativa de resgate que estão a ser transmitidas.
Ser observador ou estar também em jogo é uma postura dupla a que muitas vezes o cidadão nesta comunidade audiovisual está preso por forma a que é como que alistado numa forma híbrida de combate, como nos dias de hoje resulta muito mais evidente.
Um filme de acção muito bem feito como este é, pode também ajudar a perceber que o que a câmara vê não é a totalidade do que o espectador vai ver, o comentário, a entrevista, o que se diz e o que as palavras não dizem, o que se tarda a divulgar ou o que é divulgado sem confirmação, tudo coisas que vão alterar a coisa vista e principalmente narrada.
Há uma realidade ficcional que os meios de comunicação acrescentam ao homem moderno (ou pós-moderno) e que hoje, mais do que nos anos 70 é essencial na apreciação da realidade política.
O filme do suíço-alemão (nascido em Basileia) Tim Fehlbaum, que realizara antes apenas dois filmes de longa-metragem, Inferno, inédito em Portugal, e A Colónia, ambos curiosamente distopias de ficção científica, revela um domínio absoluto da narrativa cinematográfica e não por acaso tem vindo a acumular prémios e nomeações nas categorias da montagem (Hansjörg Weißbrich) e do argumento original (em que está nomeado este ano para o oscar).
Às primeiras horas da manhã uma equipa de televisão americana, ainda ensonada, dá-se conta que na sua vizinhança há um atentado com motivações políticas em que estão tomados como reféns um grupo de atletas israelitas e entre a confirmação do que se passa (começam apenas por ouvir o que parecem tiros) e a obrigação de informar começa a desenrolar-se toda uma inesperada operação.
Baseado em factos reais, embora ocorridos há mais de cinquenta anos, mas ainda presentes na memória de muitos e, aliás, já abordados em filmes anteriores, talvez o mais relevante de todos, Munique (2005) de Steven Spielberg que no entanto partia dos factos para narrar a posterior perseguição dos prováveis responsáveis, o que guia a narrativa não são bem os factos ocorridos, já que o filme não acompanha propriamente a operação de resgate das vítimas, mas os dilemas e a pressão da sua elaboração jornalística ao estilo de alguns filmes paradigmáticos, como Os Homens do Presidente (1976) de Alan J. Pakula, correspondente aliás a factos ocorridos no mesmo ano de 1972 que levaram à resignação do presidente americano Richard Nixon.
O filme usa imagens da própria emissão desse dia da cadeia de televisão ABC e trata com grande cuidado visual a reconstituição da época, mas revela igual eficácia a expor todo o contexto político logo nos diálogos iniciais.
Antes ainda dos primeiros sinais do massacre que vai ocorrer, vemos o diálogo entre o chefe de toda a operação televisiva, Roone Arledge (Peter Saarsgard), e Marvin Bader (Ben Chaplin), um dos produtores principais que como Arledge viria a cobrir 10 olimpíadas entre 1968 e 1992, que duvida da pertinência de introduzir na reportagem um apontamento sobre o Holocausto a propósito da origem judaica do nadador americano Marck Spitz que obtivera na véspera a sétima medalha olímpica. Presentes no conjunto, Jacques Lesgards (Zinedine Soualem), um francês argelino que se ocupa das bobines, e Marianne Gebhardt (Leonie Benesch), intérprete alemã que faz as traduções, e através dos quais se apresentam os preconceitos que condicionam muitas das interacções. O pivot principal da operação é, porém, Geoffrey Mason (John Magaro) que vai ser o realizador com a responsabilidade de colocar no ar as imagens de que dispõe na régie durante a emissão, enfrentando os dilemas do dia extraordinário que se vai seguir.
O filme teve ainda a intervenção como produtor associado de Sean Penn, actor duplamente oscarizado e activista político irreverente, mas nem isso o desequilibrou para o lado do seu conhecido activismo. Provavelmente não ambicionou ser um filme de causas, mas é sem dúvida um filme que nos questiona precisamente na área da política que não se consome exclusivamente como espectáculo. Apesar de tudo há acontecimentos de que todos somos testemunhas: vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar. Talvez queira ser um filme oportuno no momento actual, de paralisia alemã e por extensão europeia.
Está tudo bem? A resposta é dada por Marianne, a tradutora, no final: "Não... Pessoas inocentes voltaram a morrer na Alemanha. Nós falhámos. A Alemanha falhou."
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