O Bobo - José Álvaro Morais (1987)
- 24 de jun. de 2024
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Atualizado: 17 de jan.
A IDENTIDADE EM QUE NOS RECONHECEMOS
É uma ideia feita, mas que carece de fundamentação, a do divórcio entre o cinema português e os espectadores. Isto porque por exemplo Non ou Vã Glória de Mandar aliás dirigido por Manoel de Oliveira, cineasta que muitas vezes surge como paradigmático desse distanciamento teve um número de espectadores superior à média dos filmes americanos exibidos entre nós e aparentemente conformes ao gosto do público.
Por tudo isso continua a ser estranho que filmes portugueses tenham dificuldades para encontrar um espaço nos ecrãs portugueses ou o que vem sucedendo estreiem em Lisboa, mas não possam ser vistos no Porto (embora cheguem a Braga, a Coimbra, etc.). Passou-se isso com A Filha da Mãe de João Canijo e agora repete-se com O Sangue de Pedro Costa e O Bobo de José Álvaro Morais. Entretanto o cartaz portuense vai se mantendo numa estagnação que desinteressará os cinéfilos que já não querem saber das reconversões de Rocky/Stallone ou não são sensíveis às últimas modas americanas tipo Ghost ou Tartarugas ninja.
Falemos, pois, de O Bobo já que não pudemos ainda ver O Sangue, estreia aparentemente prometedora de Pedro Costa. O Bobo é o primeiro filme de ficção de longa metragem de José Álvaro Morais depois de Ma Femme Chamada Bicho, um documentário sobre Vieira da Silva, que estreia após uma produção que durou oito anos, e três anos depois de ter sido premiado no Festival de Locarno, quando o cineasta prepara um novo filme adaptado do romance de Agustina Bessa Luís A Corte do Norte.
Antes de O Desejado de Paulo Rocha (outro filme português incompreensivelmente inédito), de O Processo do Rei de João Mário Grilo ou de Non de Manoel de Oliveira, o filme de José Álvaro Morais é um olhar sobre a História de Portugal através do romance de Alexandre Herculano que o protagonista Francisco (Fernando Heitor) teatraliza enquanto se discute a sua relação sentimental com Rita (Paula Guedes) e um grupo político tenta vender armas para abandonar o país no rescaldo de uma revolução abortada. O filme articula de forma hábil e ágil vários fios narrativos ao mesmo tempo que se interroga sobre o passado (tudo no filme é flashback) enquanto os segmentos de acção se constroem em futuros determinados por uma certa indecisão (a fundação da nacionalidade, a missão de D. Bibas no castelo de Guimarães, a estreia da peça, o abandono do país).
Um dos aspectos mais interessantes do filme que se prende com o luto de uma geração é o diálogo entre Francisco e Rita sintomaticamente de apelido Portugal, ele sonhando sair do país, ela optando por ficar com tudo o que isso tem da aceitação dos limites em que toda a identidade se encerra.
E O Bobo muito claramente é um filme sobre a identidade nacional, cultural, familiar, pessoal ou sexual num terreno de ambiguidades que um bobo como máscara também simboliza. O que surpreende é a forma quase perfeita como José Álvaro Morais gera uma narrativa saturada de linhas que se cruzam sem nunca deixarem o espectador confuso ou alheado.
O Bobo atesta a maioridade do cinema português em que vale a pena acreditar. E a nível simbólico o Portugal que o protagonista é tentado a deixar é também o do cinema português em que de uma maneira ou de outra nos haveremos de reconhecer como Rita Portugal ao decidir ficar.
A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 12/1/1991


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