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O MELHOR DOS MUNDOS - RITA NUNES (2024)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • 3 de dez. de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 24 de dez. de 2024


QUANDO TUDO AMEAÇA TREMER

António Roma Torres

 

Rita Nunes tem 50 anos de idade e apresenta agora a sua segunda longa-metragem de ficção depois de Linhas Tortas, seu muito interessante filme de estreia. No entanto chega aqui depois de um largo percurso na publicidade e em filmes para televisão, onde se destaca como co-autora da série para a televisão Madre Paula (Prémio Sophia 2018 da Academia Portuguesa de Cinema) e nos telefilmes As Contas do Morto e Só por Acaso (Prix Europa 2004) e mais recentemente um episódio da série Na Porta ao Lado no canal de streaming OPTO, onde divulgou também a série Efeito Estufa sobre a imigração e a cultura intensiva de frutos vermelhos no Alentejo.


A estreia agora de O Melhor dos Mundos pode constituir uma espécie de prova dos noves que a leve a mais altos voos. O ponto de partida do filme foi a memória do terramoto de Lisboa em 1755, que pouco antes da estreia foi aliás reavivada na noite de 26 de Agosto em que se registou a maior actividade sísmica na zona de Lisboa desde 1969.


E a questão que o filme coloca é se é possível prever um terramoto? Na realidade não, como se pode perceber numa transcrição de entrevista à realizadora no Sismar podcast da Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica, mas de certa maneira é uma realidade que pode não estar longe.


Sem ser um típico filme de ficção científica, o argumento de Rita Nunes e do brasileiro João Cândido Zacharias vai deslocar o tempo do filme para 2027, e monta nessa hipótese, com grande realismo diga-se, a actividade comum do IPMA (Instituto Português do Mar e Atmosfera), que colaborou no filme, e nomeadamente de um grupo de sismólogos e oceanografistas juntos no LEA (Listening  to the Earth under the Atlantic) – um dos seus elementos, Luís Matias, foi o consultor científico do filme. Na realidade a realizadora inspirou-se também em notícias da substituição prevista para 2025 dos cabos submarinos transatlânticos que vão acoplar sensores que poderão elaborar alertas sobre a actividade sísmica embora talvez de uma forma não tão precoce como aparece no filme.


O núcleo dramático do filme desenrola-se numa noite em que os sinais detectados pelos cientistas permitem suspeitar que possa estar próximo um sismo na área de Lisboa, mas não pode haver a certeza e então a responsabilidade com que se deparam expressa-se num dilema naturalmente a ser resolvido a nível superior, nas instâncias governamentais – já víramos antes uma cena algo caricata de uma reunião com o secretário de Estado sobre o financiamento do projecto. Deve a população ser avisada por forma a tentar evitar as consequências mais trágicas de uma eventual catástrofe ou é mais prudente esperar uma mais clara confirmação em vez de desencadear um injustificado alarme se nada vier a ocorrer?


Note-se que, embora Rita Nunes já alguns anos antes tivesse escrito um argumento sobre um novo sismo em Lisboa, este novo guião foi escrito entre o final de 2019 e o ano de 2020, quando se desencadeou em Portugal a pandemia COVID-19 que naturalmente levantou muitas questões do mesmo tipo.


A discussão entre os cientistas, a chamada durante a noite de outros colegas, e do próprio chefe, os problemas de consciência e as diferentes sensibilidades e a decisão final que leva a que um membro da equipa seja enviado à televisão, Marta (Sara Barros Leitão), criam um clima de huis clos bastante eficaz no plano dramático e que sempre remete, mesmo noutro contexto, para o velho Doze Homens em Fúria de Sidney Lumet, cineasta também oriundo da televisão.


O filme tem, no entanto, um arranque lento onde se estabelecem os pressupostos da questão, com alguma eficácia narrativa, que é uma característica segura no cinema de Rita Nunes, mas de uma forma minuciosa que interessa muito menos o espectador e talvez pudesse ter sido dada nos diálogos também bastante eficazes do grupo fechado, enquanto a cidade dorme.


Por outro lado, há no filme como que uma indecisão, entre deixar caracterizar melhor as circunstâncias privadas e familiares dos vários elementos do grupo ou centrar no par amoroso que de certa maneira vê também o seu mundo afectivo tremer, e acabar por ruir, na relação apesar de tudo contida na economia geral do filme, entre Marta e o seu namorado Miguel (Miguel Nunes), também cientista, mas mais preocupado com as questões existenciais das alterações climáticas.


Mas apesar de tudo há uma inquietação que acompanha o casal protagonista, e uma diferença radical nas visões do mundo em que cada um deles parece já afastar-se, larvar antes mesmo de se declarar a mais ampla ameaça que poderá sobrevir.


Tanto no plano afectivo e romântico, como no plano social e político, Miguel e Marta representam duas mundividências diferentes e não provavelmente por uma questão de género.


Ele estuda o mar. Parece mais imaturo, sonhador, jovial, com um projecto de investigação científica iniciado ainda há pouco tempo na oceanografia, um meio naturalmente biológico, mais vivo. Mantém uma certa dose de utopia, mas paradoxalmente também um menor compromisso. Considera mais prejudicial disseminar o alarme e o caos sem assumir que a proteção faça realmente a diferença.


Ela estuda a terra. Surge-nos, em aula de anfiteatro na faculdade, segura dos seus conhecimentos, mas capaz de se questionar e despertar o pensamento reflexivo. A sua área é a sismologia, num meio aparentemente mais sólido mas sujeito às fracturas das placas tectónicas. Irá dar a cara na televisão, onde é enviada como perita para esclarecer o país, numa cena com pontos de contacto com a entrevista literária de António (Américo Silva) em Linhas Tortas.


O título O Melhor dos Mundos, por sua vez, mostra uma apetência pela temática histórica e filosófica associada ao terramoto de 1755, considerado como um dos marcos de entrada na idade moderna, na citação deliberada de Leibniz depois glosada satiricamente no Cândido de Voltaire, que aliás refere explicitamente o terramoto de Lisboa, mas acaba por ser uma linha que fica um bocado perdida no desenvolvimento do filme.


De certa maneira fica apenas um muito ténue travo do romance de educação, da viagem iniciática do jovem Cândido conduzido pelo optimismo forçado do seu mentor, Dr. Pangloss, ou em busca da amada Cunegundes, no romance de Voltaire. Ciclicamente o mundo cultural, como o mundo físico, passa por fracturas provocadas pelos movimentos desencontrados da ordem e do caos, onde emerge uma espécie de abalo com as réplicas que se lhe seguem. Outras vezes são algumas efemérides ou as particularidades do calendário que enquadram as referências a Voltaire - note-se por exemplo que uma adaptação da chegada de Cândido a Lisboa no dia do terramoto em 1 de Novembro de 1755 num texto teatral de António Torrado, com o título Tudo Corre Bem no Melhor dos Mundos, foi encenada por João Mota na Comuna em 1999, na passagem do milénio, vindo a ser publicada em Novembro de 2005, coincidindo com os 250 anos do terramoto de Lisboa, numa edição patrocinada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.


É evidente porém que Rita Nunes não se sente propriamente atraída pelo tom exuberante, satírico e de fantasia extrema, do texto de Voltaire. O seu cinema em certo sentido filia-se numa vertente fenomenológica ou existencial do cinema português, inaugurada no ano Gulbenkian de 1972 por José Fonseca e Costa (O Recado) e António-Pedro Vasconcelos (Perdido por Cem), que demasiadas vezes se tem confundido como um projecto comercial ou até erradamente assimilado como um nem-nem, nem cinema de autor, nem cinema de massas, um mero cinema do meio na designação que Kathleen Gomes em 2004 aplicou a O Milagre de Salomé, de Mário Barroso, director de fotografia de Kilas o Mau da Fita, e protagonista no Camilo de Manoel de Oliveira em Amor de Perdição e O Dia do Desespero, e agora escolhido por Paulo Branco para filmar Lavagante, um projecto que António-Pedro Vasconcelos morreu sem ter iniciado a rodagem. Esse cinema que encena o dilema, mais moral que psicológico, mais narrativo que poético, e que pretende filmar a consciência, vem sendo desenvolvido nas novas gerações por Rita Nunes (Linhas Tortas e O Melhor dos Mundos), mas também por Cláudia Varejão (Lobo e Cão), Ivo M. Ferreira (Cartas de Guerra e Hotel Império) ou Leonor Teles (Casa).


Mas a verdade é que O Melhor dos Mundos tal como o anterior Linhas Tortas, tem uma duração de pouco mais que uma hora, o que radicará no formato televisivo a que Rita Nunes se tem habituado, ou pode também ser reflexo de limitações orçamentais, neste caso em que a realizadora até acumulou a função de produtora que em filmes anteriores fora de Paulo Branco. A segurança de que a sua carreira cinematográfica tem dado provas fá-la, no entanto, merecedora de uma oportunidade de maior desenvoltura.

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