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O QUARTO AO LADO - PEDRO ALMODÓVAR (2024)

  • Foto do escritor: António Roma Torres
    António Roma Torres
  • 27 de dez. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 8 de jan.


A MORTE PELA FRENTE

António Roma Torres

 

Pedro Almodóvar é o cineasta espanhol mais brilhante da sua geração e o único que verdadeiramente transcendeu as fronteiras ibéricas como antes talvez apenas Buñuel tenha conseguido. Ele apareceu na movida madrilena no início da década de 1980, embora num melodrama frequentemente misturado na franca provocação ou pela distância da caricatura por vezes feroz, até Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988), primeira manifestação que o elevava definitivamente acima dos géneros ditos menores. Daí por diante alcançou repetidamente a excelência em Tudo Sobre a Minha Mãe (1999) ou Fala Com Ela (2002), e, mais tarde, Voltar (2006), no difícil género que é o melodrama onde preenchera o vazio deixado pela morte precoce de Rainer W. Fassbinder, precisamente no ano de 1982 em que Almodóvar começa a despontar. Depois pareceu perder-se em variações menores dos mesmos temas porventura incapaz mesmo de voltar sem, contudo, se ter deixado consumir num fogo intenso e breve como sucedera a Fassbinder.


A carreira pareceu durar para lá do que a vida breve e febril pudera consentir até que Dor e Glória (2019) abriu um novo espaço, de um cinema que reflecte sobre si próprio e a sua linguagem, mas também do ponto de vista de uma idade em que se começa a fazer contas à vida, que a média metragem Estranha Forma de Vida (2023) e o actual O Quarto ao Lado (2024) viriam prolongar. É se quisermos um cinema de câmara, seguro, mais cerebral, em que as emoções parecem menos deixadas à solta ou raramente atingem o zénite. Não por acaso, alguns planos de Tilda Swinton sugerem a Liv Ullman de Persona de Ingmar Bergman.


Talvez a língua inglesa em que os dois últimos filmes foram rodados, não sendo a sua língua materna, tenha possibilitado a Almodóvar uma distância em que parece permitir-se falar de si, desde logo ao identificar-se com Julianne Moore no seu desconforto perante a ideia de morte. “Perante a morte sou como uma criança, não sou alguém maduro. Não aceito a morte. Tal como Julianne Moore em O Quarto ao Lado também eu não percebo porque é que algo que está vivo tem de morrer.”


O filme aliás começa logo como se fosse um ensaio, expondo metodicamente o tema que vai glosar, com Ingrid (Julianne Moore) assinando um livro que acabara de publicar numa sessão de apresentação de um novo livro numa bela livraria de Nova Iorque, explicando a uma sua leitora com alguma tensão a dificuldade de escrever sobre a morte e uma certa incompreensibilidade que o tema lhe traz. Logo de seguida alguém lhe comunica que uma velha amiga que não vê há muitos anos, Martha (Tilda Swinton), está doente com um cancro e internada num hospital. Martha é jornalista, foi correspondente de guerra em zonas de combate, e muitas vezes viu a morte por perto, mas esta doença potencialmente fatal que se vai apoderando dela lentamente é uma experiência nova para ela, como se apercebe na primeira visita ao hospital que lhe faz de imediato.


É interessante também que o tema seja uma variação sobre uma velha amizade que se retoma, como no anterior Estranha Forma de Vida, mas aqui não sobre uma relação amorosa de dois amigos, breve e intensa, que não tivera continuidade, mas uma verdadeira amizade longa e tranquila, que mesmo um amante comum não conseguiu perturbar.


Curiosamente Damian (John Turturro) mantém ainda uma amizade colorida com Ingrid e vai apoiá-la à distância quando sabe que Martha sabendo do mau prognóstico da doença, opta pelo suicídio com um comprimido letal obtido na internet dark e pede a Ingrid que a acompanhe nos últimos dias numa linda casa de campo alugada para o efeito pondo-a assim em risco perante um comportamento ilegal de auxílio do suicídio.

Simultaneamente Damian é um antigo professor que se torna um vigoroso activista da luta contra as alterações climáticas de responsabilidade humana, no que se pode considerar o suicídio de toda a humanidade.


Os dados estão lançados para uma teia de conversas que vão enquadrando o tema da morte, partilhado por alguém que acompanha de perto o último capítulo de uma biografia alheia. Embora Almodóvar tenha escolhido primeiro como intérprete Tilda Swinton, que protagonizara o anterior Voz Humana, curiosamente um monólogo clássico de Jean Cocteau que Ana Magnani interpretara para Rossellini muitos anos antes, a quem pediu conselho sobre quem poderia contracenar com ela agora num diálogo profundo e verdadeiramente íntimo, a protagonista enfrentando a morte na realidade acaba por ser Julianne Moore, num psicodrama que põe em cena as reflexões do livro que acabara de publicar.


É verdade que acompanhar alguém que se prepara para morrer, não deixando de ser uma atitude de grande generosidade, constitui uma preparação para a própria morte, temática que parece importar ao filme mais que as questões do suicídio ou sequer da eutanásia. No fundo é a aceitação da morte que está em jogo, e como questão existencial mais que psicológica.


Almodóvar parece assim afastar-se do registo emocional de grande parte da sua filmografia para tentar racionalizar o próprio diálogo interno num tema tangível como é o da finitude da existência, embora o registo do filme seja sempre próximo e empático e não se limite num plano discursivo ou filosófico que poderia ser mais próprio de um Bergman ou um Rohmer. É interessante que sobre O Quarto ao Lado se poderia dizer que as duas mulheres são a mesma mulher em diálogo consigo própria como Woody Allen sobre O Silêncio num texto muito rico que escreveu no New York Times aquando da morte de Ingmar Bergman, para o que contribui também alguma parecença fisionómica das actrizes que em alguns planos as tornam confundíveis, em O Quarto ao Lado, como em O Silêncio, A Máscara, muito principalmente, e até Sonata de Outono, do grande mestre sueco.


Susan Sontag chamou-lhe doubling, num texto também sobre outro filme de Bergman, Persona/A Máscara, numa muito menos linear “narrativa de tema-e-variação”, e é também neste espelho como essência do cinema que o filme de Almodóvar como que se suspende. Este cinema não é sobre o que acontece, mas sobre como acontece, procurando um outro significado para essa coisa mágica que parece ser o tempo vivencial. O tempo da vida e da morte.

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