top of page

Os Olhos Da Ásia - João Mário Grilo (1996)

  • 24 de jun. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 13 de jan.

As palavras e os sinais 

 

O projecto de "Os olhos da Ásia" de João Mário Grilo passou por diferentes fases no seu desenvolvimento. E isso talvez ajude a perceber o que é no filme mais e menos interessante e até a ajuizar a partir das mais recentes declarações do cineasta (por exemplo a entrevista a Rodrigues da Silva em "Jornal de Letras" , 9/4/97) a parte de risco que o filme comporta.


Depois de "O processo do rei" , filme de 1989 , João Mário Grilo fez para a televisão "O fim do mundo", que acabou por ser exibido nas salas de cinema , e "Saramago, Documento" , sendo "Os olhos da Ásia" um regresso de certa maneira ao "cinema" e à temática histórica.


Mas João Mário Grilo, que é também professor de cinema numa Faculdade de Comunicação Social (e não exclusivamente de cinema) e alia a essa actividade teórica o exercício regular da crítica de cinema na revista "Visão", onde o comentário a cada filme não abdica de uma postura consistente de defesa de determinado cinema, abreviando razões, não dominante, faz uma opção muito menos "rosselliniana" do que em "O processo do Rei" .


"Os olhos da Ásia" não joga apenas numa distância que evita a dramatização para procurar uma verdade mais próxima do documental, até por vezes do didáctico, mas inscreve no próprio filme um conflito de culturas dominante/dominada, onde das certezas inabaláveis se descobre a dúvida. "Eram palavras , Julião, eram palavras" remata o filme, na perspectiva do padre Ferreira que abjura o cristianismo e se converte ao budismo, enquanto o japonês Julião, também jesuíta, se deixa matar em nome da fé cristã que chegara com os portugueses ao seu país. Na mesma entrevista João Mário Grilo diz que esta é a sua última obra de juventude, destruindo "essa galeria de personagens de expiação que dominaram o meu cinema até agora", e o que surpreende no filme não é o retrato da impotência de Julião , mas a compreensão da abdicação de Ferreira, e mais até do que isso , da ambiguidade da personagem de Miguel, que fora também um dos quatro jovens adolescentes que visitaram a Europa e o Papa quando tinham dezasseis anos , e viveram uma adolescência de descoberta de um mundo novo no sentido contrário ao dos chamados Descobrimentos portugueses.


Miguel não se torna, como os outros, padre jesuíta e regressa aos costumes da sua cultura original, mas enquanto tenta demover Julião da persistência na sua atitude de resistência, aproveitando a cegueira que a tortura lhe trouxera, aparenta ausentar-se permitindo assim que Julião baptize o neto de forma supostamente furtiva. De certa maneira é entre duas culturas , entre duas religiões, entre a fidelidade às suas origens e às crenças de juventude, que se coloca a tarefa talvez menos heroica, mas mais produtiva, da sobrevivência. Inicialmente o projecto de João Mário Grilo centrava-se na viagem dos jovens adolescentes japoneses à Europa , mas o cineasta acaba por se interessar pelo dilema dos anos em que o cristianismo não floresce já em Nagasaki, mas antes é proibido e objecto de perseguição. E entre a fé e a realidade, Ferreira (João Perry) é realmente uma personagem paradigmática. Porque Julião não duvida do sonho da sua juventude, a sua certeza é interior, enquanto Ferreira trava uma luta heroica, mas espera que a realidade exterior confirme a sua razão. Ele espera de Deus sinais, uma espécie de evidência que lhe seja exterior, e finalmente não resiste mais.


João Mário Grilo também faz um filme aberto à realidade onde os supostos iniciais se deixam permeabilizar pelo que encontra. A sua câmara não é já a da encenação rigorosa que obedece à palavra, e à sua fixação em documentos, e não ignora a memória recente de Nagazaki. Assim Jane (Geraldine Chaplin) é uma europeia, muito visivelmente comunitária que volta ao Japão, onde vivera a infância quando o pai arquitecto colaborara na reconstrução de Nagazaki, após a bomba atómica, para contratar um espectáculo de ópera para exibir na Europa, precisamente sobre a juventude dos quatro adolescentes que foram na embaixada ao Papa.


E o próprio cruzamento cultural de Geraldine Chaplin é um emblema de algo que atravessa a linha dramática do filme, por vezes dando a impressão que João Mário Grilo não procurou as soluções dramáticas mais consistentes, facilitando alguma coisa pelo lado do retrato folclórico (a festa local) ou da entrevista ao padre espanhol que conta o martírio de Julião e a apostasia de Ferreira, embora o realizador tenha o mérito de respeitar as crenças alheias resistindo à tentação fácil de as enformar no seu próprio ponto de vista. A temática das memórias de juventude e da reconstrução e sobrevivência, reactualiza-se em Jane, mas João Mário Grilo não parece apostado em dar a esta personagem a mesma consistência das de Ferreira e Julião, e jogá-las dramaticamente no mesmo plano e não como um olhar reflexivo. É por isso que talvez se possa dizer que, sendo um filme interessante, "Os olhos da Ásia" passa ao lado de um grande fôlego que poderia adquirir, talvez amadurecendo mais o argumento, jogando mais os jovens cantores de ópera também prestes a partir para a Europa (reminiscência que quase se acaba por perder face ao ponto de partida original), a representante da Comunidade Europeia e a evocação da destruição e reconstrução de Nagazaki, e o dilema da diferente solução da resistência de Julião e de Ferreira (onde João Mário Grilo parece dominar melhor uma verdadeira expressão cinematográfica).


A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 12/4/1997

Posts recentes

Ver tudo
LAVAGANTE – MÁRIO BARROSO (2024)

O LUGAR DO(S) MORTO(S) António Roma Torres   Numa das primeiras cenas de Lavagante , Cecília (Júlia Palha) numa conversa depois da representação de Tosca  de Puccini no São Carlos declara em tom críti

 
 
 

Comentários


Sobre nós

Este é um blog sobre cinema, particularmente sobre os filmes portugueses entre 1972 e a actualidade e os filmes em exibição nas salas de cinema portuguesas

© 2035 por O Artefato. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Branca Ícone Instagram
bottom of page