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Tempos Difíceis - João Botelho (1988)

  • 24 de jun. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 15 de jan.

ONDE ESTÁ A FELICIDADE?

 

Havia grande curiosidade em saber como se sairia João Botelho da adaptaçao cinematográfica de "Hard Times" de Charles Dickens um clássico da literatura inglesa, embora não seja um dos mais conhecidos romances do autor, pelo menos entre nós. Inclusiva­mente Joao Botelho nos dois filmes an­teriores, "Conversa acabada" e "Um adeus português" tinha partido de argumentos originais, embora no primeiro caso houvesse uma relaçao com a literatura, através de pensamentos dos poetas Fernando Pessoa e Mario de Sá Carneiro que o cineasta abordava com grande sensibilidade e ao mesmo tempo um sen­tido interessante de promoção cultural. Poder-se-ia recear que uma adaptaçao de Dickens fosse apenas um "serviço" feito a um autor de grande dimensão capaz assim de sair de um certo esquecimento a que o publico leitor, particularmente jovem, o tem votado. Pois bem, João Botelho ganhou definitivamente o desafio e fez talvez a sua obra mais ambiciosa até ao presente, ele que de toda a maneira é um exemplo de cineasta discreto que não procura a via de ostentaçao e de um certo exibicionismo estético que muitas vezes compromete mesmo os melhores projectos.


"TEMPOS DIFÍCEIS" é  um  filme que nos surpreende até pela imaginaçao das próprias opções estéticas e narrativas na adaptação do original de Dickens. Evidentemente que não se trata de procurar competir com a chamada "qualidade inglesa", bem visível em determinadas séries de televisão com bons  actores,  bons cenários, bons vestidos, boa fotografia, mas finalmente académicas e sem chama.


Joao Botelho vai por um  caminho totalmente diferente e depois de visto o filme, pode considerar-se que se trata de um verdadeiro "ovo de  Colombo" já que, sem sacrificar a estrutura narrativa linear da história, como se po­derá dizer, apta para  todos  os  públicos, há por outro lado um coerente investimento de pesquisa estética, mesmo quando é evidente a  referencia  cinéfila  de citações que se não escondem e  de  uma nostalgia por um outro cinema, aparentemente diferente do dominante e maioritário nos dias de hoje. 

 

Naturalmente João Botelho beneficiou de uma ideia clara ao abordar o texto de Dickens que lhe foi fornecida por duas citações de David W. Griffith, o americano que verdadeiramente criou a linguagem cinematográfica, e de Sergei M Eisenstein, o cineasta e teórico soviético cuja importância é verdadeiramente primordial na história do cinema. Am­bos põem em evidência as caracteristicas, se quisermos pre-cinematográficas da narrativa de Dickens, e João Botelho vai procurar uma forma de expressão que possa coincidir com esse olhar fértil dos primeiros passos da criaçao cinematográfica onde naluralmcnte era preciso inventar tudo.

 

É de «tempos» por outro lado, que o filme de Botelho fala — tempos sociais e tempos da própria expressão cinematográfica — e um dos efeitos francamente conseguidos  em "TEMPOS  DIFÍCEIS" é ter localizado a acção num tempo indefinido sem por isso deixar de usar todos os códigos de um cinema narrativo não abstracto, nem recorrendo a artifícios de distanciação.


De facto, o «Poço  do  mundo» que o filme retrata não é Portugal de hoje, nem  de  há  trinta  anos,  nem  Londres do século passado. É de  certa  maneira todo o tempo e todo o lugar — e esse ambiente é  evidentemente criado pelo trabalho estético dos espaços e dos cenários, com alguns elementos dissonantes criando realmente uma virtual realidade fílmica.


Elaborando particularmente a escala dos planos com recur­so a planos de conjunto, particularmente as cenas dos operários, ou a planos de pormenor, que pontuam o filme numa incorporação evidente de uma memória cinematográfica exterior ao cinema "standard" de  Hollywood e, se quisermos, pre-"nouvelle  vague",  onde  passam referências a Griffith e Eisenstein, inspiração inicial deste projecto mas também  todos   os   "mudos" soviéticos, Fritz Lang (de "Metropolis", por exemplo), Carl Dreyer (do mudo mas também dos últimos filmes) Robert Bresson (muito claramente uma das referências permanentes de Botelho) ou ainda por momentos Orson Welles ou o neorrealismo italiano. Tudo isso que se pode encontrar no filme não é  acompanhado de qualquer erudição ou reverência para iniciados, antes é a forma concreta de conseguir uma leitura inovadora do tex­to de Dickens. 

 

Uma outra aproximação que podemos fazer a "TEMPOS DIFÍCEIS"  de  João Botelho prende-se  evidentemente com a temática em certo  sentido  moral do filme e com o aprofundamento de algumas ideias força que não eram completamente desenvolvidas em "Um adeus português".


O filme começa numa sala de aula e em  certo  sentido  seguin­do Dickens, é um filme sobre a educação. Tomás Cremalheira, Gradgrand no original de Dickens (Rui Furtado) educa os seus filhos numa certa noção de prag­matismo que aparentemente visa o su­cesso social, como equivalente  provável da felicidade. O percurso dos  filhos  porém virá evidenciar a ilusão através do casamento infeliz de Luísa (Julia  Britton) ou da queda em desgraça após um roubo de Tomazinho (Luís Estrela). A felicidade estará nas imagens filiais em Cecília (lnês Medeiros), desde as primeras cenas refractária à ideologia de Cremalheira mas acabando por ser adoptada pela família numa atitude aparentemente generosa de a tirar da miséria e do abandono do pai.

 

Já em "Um adeus português" João Botelho abordava o conformismo, em protagonistas aparentemente suspensos no tempo, incapazes de  elaborarem o luto das perdas e caminharem criativamente para o futuro. Era uma espécie de diagnóstico do fatalismo português, do fado, feito sem raiva e sem alternativas aparentemente com um certo carácter de inevitabilidade. 


As personagens  de "TEMPOS DIFÍCEIS" quase todas elas prolongam este retrato particularmente Luísa mas também outras personagens secundárias como Teresa Cremalheira (Isabel de Castro) a senhora Vilaverde (Eunice Muñoz) ou o operário Sebastião (Joaquim Mendes). O contraponto de Cecília, embora uma  personagem menos marcante no  desenvolvimento do filme, mas aquela onde se adivinha uma resistência interior e que no final é capaz de alcançar a felicidade acaba por dar uma dimensão mais  sadia aos retratos que João Botelho esboçara em "Um adeus português" e no filme presente.

  

Também aqui João Botelho seguiu uma ideia clara que foi a de desligar esta ideologia pragmática de adaptaçao e de sucesso não se referindo apenas às mutações do desenvolvimento industrial de Inglaterra do século passado mas pondo-a em relação com as mutações do Portugal dos anos oitenta o que Botelho faz com sensibilidade e inteligência mais através da metáfora do que do sermão moralista que seria o perigo visível de uma leitura como a proposta pelo cineasta.


Não se trata de adaptar o romance de Dickens, a sua acção, realisticamente ao tempo português actual, mas sim de o adaptar hoje e aqui com o aparente anacronismo em todo o caso capaz de questionar o espectador português a quem antes de mais o filme se dirige. 

 

De referir, ainda que João Botelho valoriza em "TEMPOS DIFÍCEIS" o humor que era já característico da obra de Dickens. Nesse sentido também o filme não joga no ambiente melancólico de "Um adeus português" sublinhando alguma ironia no próprio tratamento da banda sonora e não constrangendo os actores a uma interpretação estática e distanciada permitindo assim que  Eunice Muñoz tenha o seu melhor desempenho no cinema num papel onde há marcados traços de comédia no que é particularmente bem acompanhada por Henrique Viana (José Grandela).


Aliás, este sentido do prazer e da vida acaba por paradoxalmente tornar o filme   mais complexo e mais interessante tornando aliciante o que poderia ter sido uma pes­quisa estética austera e difícil.


No fundo "TEMPOS DIFÍCEIS" sem perder os méritos que lhe apontamos é um filme simples,  narrativamente bem trabalhado, capaz de captar o espectador numa primeira leitura imediata.

 

 

A. Roma Torres in Jornal de Notícias, 8/10/1988 

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