VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES - MANOEL DE OLIVEIRA (1982)
- António Roma Torres

- 24 de jul.
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de jul.
NA SALA DE PROJECÇÕES DE OLIVEIRA
António Roma Torres
Em 1982 Manoel de Oliveira tinha 73 anos, concluíra a sua "tetralogia de amores funestos" (O Passado e o Presente, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca) que define uma primeira unidade na sua filmografia pós "Anos Gulbenkian", vendera a sua casa da Vilarinha onde tinha vivido quarenta anos, e podia supor-se em fim de carreira.
Obtém então dinheiros públicos para fazer um filme, confessional como o próprio título indica, destinado a exibição apenas após a sua morte. Até então tinha realizado 6 longas-metragens, mas viria a assinar 24 mais até à sua morte em 2 de Abril de 2015.
Visita ou Memórias e Confissões teve estreia mundial em 4 de Maio de 2015 no Teatro Municipal Rivoli no Porto e é ao mesmo tempo uma surpresa e um reconhecimento.
Nele são profundas as interrogações do tempo (o presente, o passado que se evoca e o futuro onde se projecta) e do espaço (o da casa, todas as casas) contrariando a tentação narcisista de auto-contemplação ao reduzir-se numa dimensão cósmica que se entenda como elo de uma passagem que liga antepassados e vindouros, efémera face à aparente perenidade das árvores em cujo olhar se detém logo na cena inicial.
VISITA
Uma câmara à mão percorre escadas e corredores e detém-se em mesas e retratos, parecendo um intruso numa casa de que os seus habitantes partiram já, enquanto um casal (Teresa Madruga e Diogo Dória) diz a duas vozes um inspirador texto de Agustina Bessa Luís. De quem é a casa afinal? De quem a vive? De quem a diz? De quem a fez? Manoel de Oliveira parece indecidir-se entre o íntimo e o estranho, o eu e o outro. Título duplo. In/off.
No fundo é o mistério do amor, do casamento, da mulher Maria Isabel, e de todas as outras que filmou, sobre as quais o cineasta fala entre a exposição e o pudor como se numa atitude paradoxal nos quisesse falar de segredos que uma casa guarda.
A casa foi encomendada por Manoel de Oliveira ao arquitecto e pintor José Porto no ano anterior ao casamento, em 1939, vindo a habitá-la desde 1942, ano em que realiza Aniki-Bóbó, filme no qual o mesmo José Porto se responsabiliza pelos cenários.
Entrei uma vez em sua casa, altas horas da noite, com a família a dormir, para fazermos um telefonema, como se dum filme negro dos anos quarenta se tratasse. Todas as casas têm um filme que as habita, como bem sabia o também educado pelos jesuítas Hitchcock de Dial M for Murder, North by Northwest ou Psycho.
Mas a casa de Manoel de Oliveira (a dele, não a que eu vi) tinha um outro filme que se iria inevitavelmente encaminhar para a cena solar com Maria Isabel cuidando de um canteiro de flores enquanto uma voz off, de novo intrusa, a interroga sobre como é viver com um cineasta. Quem faz a pergunta que a desassossega, e para a qual nem é preciso conhecer a resposta, talvez não seja a voz feminina que o filme regista mas o próprio Manoel de Oliveira, antecipando a mesma Maria Isabel filmada por ele, anos mais tarde, a cantar em Cristovão Colombo - O Enigma, com igual problemática aí projectada no médico que tem uma paixão por uma pedra onde a História se poderá decifrar.
MEMÓRIAS
O cinema como a fotografia são produtos de registo de memórias e essa consciência foi sempre importante no universo de Manoel de Oliveira. Visita ou Memórias e Confissões usa ambos abundantemente mas o que surpreende é como Manoel de Oliveira os inclui na casa mostrando a sua própria projecção (ou no caso das fotografias os seus caixilhos ou molduras), como se não fossem, por um efeito de montagem, imagens de um mesmo filme.
Este efeito de projecção é uma forma de ver o passado mas também de, por assim dizer, ver o futuro. Se há uma câmara que filma, evidenciada pelos planos sequência de uma mobilidade que Oliveira viria a trocar pela também evidência do plano fixo em O Meu Caso, por exemplo, há também uma outra que projecta e se pode apontar em sentido contrário, a quem vê, como nos contra-campos que Oliveira explorou desde Benilde ou a Virgem Mãe.
Um jogo interessante é ver quantos filmes posteriores estão projectados nas diferentes cenas, ou evocações ou simplesmente no desejo que a consciência da finitude torna precário e de certa forma é o móbil de todo filme.
Neste contexto o colégio dos jesuítas em La Guardia (ou em galego, agora oficial, A Guarda), onde Manoel de Oliveira fez os estudos secundários, não é um acidente irrelevante com uma referência de certa atenção e que rima com A Viagem ao Princípio do Mundo onde significativamente tudo se observa do lado de cá, de Caminha, num diálogo com o alter-ego Marcello Mastroiani de quem o próprio Oliveira é no filme motorista. Na sala de projecções de Manoel de Oliveira há um olhar de fora e um olhar de dentro que nunca se confundem mas coabitam e essa é uma consciência complexa da realidade que tem uma marca bem genuína do cineasta.
CONFISSÕES
Uma das cenas fortes do filme é a prisão pela PIDE e a sua condução a Lisboa num Citroën da época, dito "arrastadeira". Percebe-se o absurdo, a dolorosa impotência, mas a ligeira encenação acentua também a ironia com o comentário sobre os perseguidores que olham obsessivamente para trás como se pudessem ser perseguidos.
Mas mais do que convocar a consciência política, com referências também à fábrica ocupada depois da revolução, e a sua destruição pelos trabalhadores com a consequente impossibilidade de desipotecar a casa que avalizara um empréstimo bancário, sem encontrar também na burocracia dos gabinetes do Estado alternativas que garantam a posse da casa ou a sua preservação como património da comunidade, o filme transmite a impotência do criador que no fundo sabe que não é verdadeiramente importante no mundo duro e talvez real da vã glória de mandar a que por imperativo da arte o poeta (O Velho do Restelo) ou o profeta (Palavra e Utopia) só pode dizer Non.
O não de Manoel de Oliveira não é protesto gritado na revolta mas sabedoria do homem que disse que "a vida é uma derrota" e "eu admiro os santos, muito mais do que os revolucionários" (entrevista a Pedro Mexia em 2013 republicada no Expresso aquando da sua morte) . Tem, como mostra o final do filme, a dimensão de um pequeno grão na natureza, uma luz no infinito cósmico. Mas uma luz que brilha.
Caminha, 25 Agosto 2015 - Colóquio "Passagem - Pasaxe, O Ensino Jesuíta e a Revista Brotéria entre Portugal e a Galiza" - Cine Teatro Valadares


Comentários