BANZO - MARGARIDA CARDOSO (2024)
- Antonio Roma Torres
- 11 de fev.
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Atualizado: 16 de fev.
UMA DOENÇA COM HISTÓRIA
António Roma Torres
O leitor pode ficar banzado ao saber que em 1851 Samuel Cartwrigt (1793-1863), um médico do Louisiana, no sul dos Estados Unidos, pouco antes da Guerra Civil americana entre o Norte e o Sul, que durou de 1861 a 1865, criou uma doença mental que designou como drapetomania, encontrada nos escravos negros e que se definia por uma caraterística: “o doente tinha um desejo inconsciente de fugir do seu dono”. Isto hoje parecerá aberrante, como mostram artigos para o público em geral, no New York Times, ou destinados à comunidade médica, no The Lancet, publicados no início do milénio, precisamente um século e meio depois, mas ao tempo era aceite nas Convenções Médicas e jornais científicos como o New Orleans Medical and Surgical Journal.
Um artigo do American Journal of Public Health de 2024 considera justamente que “uma análise do pensamento racial desde o período anterior à guerra até às fases definidas por Jim Crow, mostra como a medicina e a psiquiatria norte-americanas têm raízes na ciência racial antebellum e como as lógicas carcerárias sustentaram as políticas passadas e presentes da saúde mental negra”, concluindo que “alterar esta trajetória exige que os profissionais interroguem os fundamentos históricos dos conceitos psiquiátricos racistas […] exortando-os a rejeitarem o realismo racial biológico, que tem reminiscências da ciência racial do século XIX, e a adoptarem a variável da raça como uma construção social para estudar as desigualdades sociais na saúde, como primeiro passo para se afastarem dos legados de injustiças passadas na medicina.”
Não tenho a certeza de que haja uma ligação etimológica entre essa adjectivação (banzado) e uma ocorrência (banzo) curiosamente ligada à nossa muito reconhecida saudade (“uma saudade que mata”) também observada na história colonial portuguesa em Angola e no Brasil, mas apresentando-se não apenas como um estado de alma, antes verdadeiramente como uma condição somática, devidamente documentada, que pode levar à morte por inanição ou suicídio. As condições de desesperança podem evidentemente ameaçar a vida como a psicopatologia da melancolia sempre compreendeu.
Margarida Cardoso é uma cineasta portuguesa de 62 anos que viveu o seu tempo de criança e adolescente na cidade da Beira em Moçambique no tempo da guerra colonial de que guarda uma memória amargurada (“Fui para lá pequenina, vivi sempre na Beira, cidade sinistra. Nenhum dos meus pais gostava de lá estar, mas era preciso estar — chegámos a viver numa vivenda, depois em prédios onde havia militares. Não tínhamos muitos amigos. Eu, como criança, é que aproveitei mais. Mas toda a vida foi como na Costa dos Murmúrios, a vida naquele hotel entre mulheres que me deixou a ideia de que havia algo de muito errado na forma como me passavam as coisas. Fabricamos uma história e essa narrativa passa a ser mais consistente do que a realidade. Eu tinha uma grande baralhação de dados e tentei construir essa memória. Por necessidade. Pelo facto de os adultos serem tão obtusos e eclipsarem tanto o que era a morte, o que era a guerra, o que estávamos ali a fazer, fiquei sempre com a sensação de que alguém me estava a esconder alguma coisa.” em entrevista a Vasco Câmara, Ípsilon/Público, 22/1/2025).
Banzo é a terceira longa-metragem de ficção na filmografia de Margarida Cardoso, o que equivale rigorosamente a uma oportunidade por década: A Costa dos Murmúrios em 2004, adaptação ainda algo incipiente do romance homónimo de Lídia Jorge, nos tempos soturnos dos familiares civis em hotéis longe de uma guerra abafada por mil razões; Yvone Kane em 2014, desempoeirada narrativa da consciência política forjada na luta armada de libertação com à vontade numa internacionalização cosmopolita, e antecipando o documentário de arquivo que será em 2022 Sita – A Vida e o Tempo de Sita Valles, sobre uma militante comunista angolana; e agora Banzo em 2024, prolongando Under-story de 2019, um documentário de investigação-ensaio pessoal “sobre uma planta e todas as suas ramificações culturais e económicas: o cacau”, em São Tomé.
Quando se poderia esperar um grande filme de maturidade, Banzo é apenas um corolário ainda larvar de um desejo de cinema que parece voltar a não conseguir satisfazer-se plenamente.
A verdade é que Margarida Cardoso dispôs de meios mais amplos – o filme é uma produção luso-franco-neerlandesa, estreou no circuito francês antes de ser exibido em Portugal e teve até uma recensão positiva de Ariel Schweitzer nos Cahiers du Cinéma nº 815.
Mas dá a impressão de que faltou o trabalho de argumento que levasse a bom porto a experiência de filmar essa nostalgia que é outro nome de banzo e que não afecta apenas a população negra vinda do continente para trabalhar nas roças de São Tomé. A mesma melancolia parece estender-se pelo menos a alguns dos colonos brancos e nomeadamente os médicos Afonso (Carloto Cotta) e Figueira (João Pedro Bénard) que branqueiam e vigiam nos registos dos seus processos clínicos os excessos de exploração num tempo já no final da monarquia (1907), após a abolição da escravatura, mas ainda sendo a população negra vítima de um trabalho forçado.
Ao registo escrito da doença de que o aparelho da saúde se ocupa, o filme inteligentemente opõe o registo do fotógrafo, Alphonse (Hoji Fortuna), que às vezes pode mostrar o que a palavra não diz completamente e esta é uma pista que leva à essência do cinema que sucedeu à fotografia, sendo que a recolha de imagens no tempo colonial cobre os limites da palavra. E sabe-se como a fotografia documentou a colonização desde o seu aparecimento na transição do século XIX-XX.
No filme de Margarida Cardoso há uma lentificação hipnótica que parece letal, levando para a morte a população desenraizada, transplantada de lugar em lugar, primeiro da costa do continente africano para a ilha, depois pelo medo de um imaginado contágio para o interior menos acessível da ilha – e no cinema de Margarida Cardoso o lugar frequentemente não tem uma materialização concreta, não tem as propriedades dos locais habitáveis, é já uma terra longe da Terra.
Entre a escrita e a câmara faltou a Banzo o trabalho de argumento de que por exemplo Os Papéis do Inglês pôde dispor na autoria de José Eduardo Agualusa, e curiosamente é essa ausência de fala, rarefeito o lugar de fala.
Margarida Cardoso parece ter investido menos no trabalho de argumento do que na direcção de actores, praticamente deixando a (não) actores emblemáticos como Carlotto Cota ou João Pedro Bénard, ou mais recentemente Romeu Runa (aqui Augusto, o homem do mato), que ganhara muito justamente o Prémio Sophia de melhor interpretação em papel secundário em Great Yarmouth: Provisional Figures, de Marco Martins – nas margens da entrevista com Vasco Câmara “a realizadora branca a falar da África negra” sente “um cerco que se aperta porque o lugar da fala é questionado em conferências de imprensa”. “Percebo o problema, mas qual é a solução? É eu não fazer os meus filmes? Hoje, ao escrever tenho cuidado com tudo, mesmo depois com o que filmo. Em Banzo tive uma pessoa a reparar naquilo que podia ser um problema. Estamos nessa. E agora o meu próximo filme será sobre as restituições [das peças de arte aos países antes colonizados] ... Tenho de me safar, vou continuar a ser eu.”
Repare-se que esta "indecisão" entre a ficção e o documentário, surgia também em Légua (2023) polarizada em cada um dos co-realizadores, Filipa Reis (em Banzo produtora) e João Miller Guerra, numa equidistância que na geografia do filme se marcava na casa senhorial de uma aldeia à mesma distância de Marco de Canaveses e Amarante. E é afinal na produtora Uma Pedra no Sapato que ambos fundaram e a que, depois de Djón África, agregaram Margarida Cardoso (Banzo), Marco Martins (Great Yarmouth: Provisional Figures), Leonor Teles (Casa) e José Filipe Costa (Prazer, Camaradas!), e agora Miguel Gomes (Grand Tour) - a delinearem talvez um cinema pós-lusíada que conjuga as memórias da Torrebela (Costa) e do lupemproletariado português no Reino Unido (Martins), com a nostalgia de São Tomé (Cardoso) ou as excursões oníricas no Extremo Oriente (Teles e Gomes).
Talvez o próximo filme de Margarida Cardoso possa estar para Banzo como Yvone Kane para A Costa dos Múrmúrios. Ou seja, desta Roça da Boa Esperança, paradoxalmente mais apática que ameaçada, talvez possa surgir a energia que permita enfrentar o Adamastor.


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