O BRUTALISTA - BRADY CORBET (2024)
- Antonio Roma Torres
- 3 de fev.
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de fev.
UM NOVO MUNDO
António Roma Torres
O Brutalista abre com uma sequência memorável. Uma câmara trepidante, ambiente escuro, planos rápidos. Há uma progressão aos encontrões e de repente a luz. E a imagem da estátua da Liberdade em Nova Iorque, invertida. Algo parece sugerir um parto, visto do lado do nascituro.
É a sugestão de um nascimento. Vamos percebendo que se trata do desk de um navio. É a chegada de Lázló Tóth (Adrien Brody) à América em 1947, depois da libertação no final da II Guerra Mundial do campo de concentração de Buchenwald, internamento que interrompera a sua carreira de arquitecto ligado ao movimento que ficou conhecido como Bauhaus (note-se que os créditos finais do filme obedeceram a uma estética inspirada nos trabalhos gráficos do movimento).
Os dados estão lançados e rapidamente se percebe o dispositivo de um cinema que oscila entre a figuração do pensamento, onde o diálogo tem uma significativa importância, e, por outro lado, a pretensão de encher o olho pelo investimento no poder das imagens.
A trama narrativa é, contudo, relativamente simples e arruma-se em duas partes, a primeira intitulada O Enigma da Chegada (1947-1952), e a segunda, O Núcleo Duro da Beleza (1953-1960), precedidas de uma curta Abertura, com a sequência já referida, e seguida de um epílogo também curto, A Primeira Bienal de Arquitectura (Veneza, Itália, 1980).
Apesar do realizador Brady Corbet, assumir Tóth como um personagem totalmente fictício, pese embora a consistência da sua ficção como um biopic, a verdade é que dois arquitectos húngaros e judeus, Marcel Lajos Breuer e Ernö Goldfinger, podem ter constituído uma discreta fonte de inspiração, o último aliás não tendo abandonado a Europa e construindo uma casa que Ian Fleming habitou em Londres, tendo usado o nome do arquitecto no baptismo do vilão da mais conhecida aventura do James Bond.
A escolha de Adrien Brody, de ascendência húngara pelo avô materno, para interpretar o papel teve um efeito imediato na associação ao holocausto que constituía o pano de fundo do filme de Polanski O Pianista, que lhe valeu o oscar da melhor interpretação masculina em 2002. Assim a sequência inicial da chegada à América é muito graficamente uma libertação da opressão nazi pelo sonho americano que invadiu a Europa no final da guerra, levando a um regresso da demanda do Novo Mundo com um movimento migratório para além Atlântico reeditando o princípio do século.
Brady Corbet é um americano do Arizona que muito jovem iniciou uma carreira como actor no cinema, inicialmente em Treze – Inocência Perdida, um teen drama de Catherine Hardwicke, onde lhe coube o papel de irmão mais velho na família de uma cabeleireira divorciada a recuperar de um passado alcoólico, Holly Hunter num papel que lhe mereceu uma nomeação para o oscar, mas logo teve oportunidades no cinema europeu em filmes como Melancholia (Lars Von Trier), Força Maior (Ruben Östlund), As Nuvens de Sils Maria (Olivier Assayas) e Éden (Mia Hansen-Løve), e muito particularmente The Sleepwalker, dirigido pela norueguesa Mona Fastvold com quem foi co-argumentista, tal como em O Brutalista, e constituiu família com uma filha actualmente com dez anos.
O olhar de Corbet é assim bastante contaminado pelo ambiente europeu olhando especialmente as guerras europeias do século XX, desde o seu filme inicial, A Infância de Um Líder, onde, a partir de um conto homónimo de 1939 de Jean-Paul Sartre, tudo era visto pelos olhos de um miúdo cujo pai integrava a delegação americana no Tratado de Versailles no final da I Guerra Mundial em 1918 e em cuja mente germinam as raízes da tirania.
A chegada de Lázló Thót à América está assim envolvida na esperança da liberdade e na beleza que o seu espírito criador persegue, mas nem tudo lhe corre de feição servindo a ajuda do primo Attila (Alessandro Nivola), comerciante de mobiliário, que o precedeu em Nova Iorque para mitigar as barreiras que se lhe deparam. No entanto a América não vai ser uma verdadeira libertação, não só porque vai demorar a conseguir trabalho como arquitecto, cuja carreira anterior fora brilhante, como se terá de confrontar com a prepotência de uma família, cujo apelido denota uma anterior geração de imigrados da Europa Central. A primeira encomenda surge de um cliente de Attila, Harry Lee (Joe Alwyn), que pretende fazer uma surpresa ao seu pai, o endinheirado Harrison Van Buren Sr. (Guy Pearce), com a renovação da sua biblioteca, mas o magnata receberá o seu trabalho inovador com indignação e desprezo, só se aproximando mais tarde já conhecedor do valor da obra europeia do arquitecto.
A primeira folha do díptico centra-se assim na relação tensa entre o artista e o protector financeiro que vai conduzir a uma aproximação íntima nas pedreiras de Carrara, em Itália, acompanhando a construção de um memorial dedicado à falecida mãe de Harrison, que permite caminhar dos materiais sujos e baratos ligados à estética do betão que o brutalismo valorizou, para o esplendor do mármore branco, ou das raízes judaicas para a mensagem cristã apaziguando na doçura de costumes a violência do instinto, evocando subtilmente o Miguel Ângelo renascentista nos seus diálogos com o papado, de A Agonia e o Êxtase de Carol Reed, ou mais seguramente de Sin – O Pecado de Andrei Konchalovsky, ou longinquamente com a sombra homoerótica de O Gigante de George Stevens no contexto da aventura, significativamente também geológica, da exploração petrolífera de uma América profunda e capitalista que simplificou no western a densidade humana da cultura clássica, e onde a espaços o negro Gordon (Isaach de Bankolé, protagonista nosso conhecido de A Casa de Lava de Pedro Costa) se define como o parceiro de uma humanidade explorada.
A memória colectiva da construção medieval das catedrais percorre as discussões e demonstrações geométricas em torno das maquetes, comunicando um efeito cósmico de um relógio solar à iluminação de uma cruz cristã sobre um templo aparentemente pan-religioso, numa discussão que chegou a informar uma ordem executiva de Trump no seu primeiro mandato, e o filme no seu imponente atrevimento tenta até o paralelo, por outro lado, com a historiografia cinematográfica ressuscitando o ecrã largo do VistaVision dos anos cinquenta que o CinemaScope conseguira ultrapassar.
A segunda folha do díptico centra-se na reunião familiar com a esposa, Erzsébet (Felicity Jones) a dar sinal de vida pela correspondência ainda na Europa no início, e depois em toda a segunda parte acabando por derrubar o ameaçador Harrison. Note-se que em todo esse desenvolvimento Erzsébet começa por não andar, presa numa cadeira de rodas por sequelas da osteoporose adquirida nos campos de internamento para vir a levantar-se com um andarilho para finalmente enfrentar Harrison, enquanto a sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy) de início não fala para rematar na Bienal de Arquitectura em Veneza com o elogio da obra de Lázló Thót, ele agora debilitado e reduzido ao silencio e à cadeira de rodas. O discurso final de Zsófia adulta (Ariane Lebed) é paralelo da Aliyah que Zsófia se propusera fazer numa cena de um jantar com os tios e o futuro marido, definindo assim a Terra Prometida como o estado de Israel e não a América onde então vivia.
Mas como dirá a encerrar o discurso Zsófia recordando o ensinamento da tia quando era uma jovem mãe em dificuldades em Jerusalém, “Não deixes que ninguém te engane, não importa o que os outros tentam vender-te, [mas] sim o destino [o ponto de chegada], não a viagem”.
É tentador comparar O Brutalista com uma outra parábola sobre a arquitectura como construção do mundo que Francis Ford Coppola nos propôs em Megalopolis, mas o que aí era uma parábola abstracta e generalizável agora pretende ser uma moral concreta que caracterizou o cinema social americano dos anos cinquenta e o protótipo que Vontade Indómita de King Vidor constituiu e que Corbet admite ter sido uma referência sempre presente na construção do seu filme. Há uma significativa distância geracional que afasta Coppola com 85 anos de idade, de Corbet apenas com 36.
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