PARTHENOPE - PAOLO SORRENTINO (2024)
- Antonio Roma Torres
- 28 de mar.
- 7 min de leitura
Atualizado: 5 de abr.
BELEZA, INTELIGÊNCIA E A IDADE
António Roma Torres
Paolo Sorrentino já tinha filmado A Grande Beleza (2013), com o actor fétiche dos seus primeiros tempos (Toni Servillo), e Juventude (2015), com Michael Caine, Harvey Keitel e Jane Fonda, já devidamente gastos pela idade, e entrara com rudeza na monumentalidade exterior da Igreja nas séries televisivas, O Jovem Papa (2016) e O Novo Papa (2019-2020), com os fictícios Pio XIII (Jude Law) e João Paulo III (John Malkovich), a par com incursões nos meandros da classe alta, vizinha do poder, nos retratos dos antigos primeiros-ministros italianos, Giulio Andreotti em Il Divo (2008) e Silvio Berlusconi em Silvio e os Outros (2018), sempre à boleia do mesmo Toni Servillo. Parthenope (2024) é agora uma espécie de revisão da matéria dada.
O filme vai buscar à mitologia grega a história de uma sereia de nome Parthenope, que tentou seduzir Ulisses sem sucesso e definhou no mar da Itália meridional onde o seu corpo deu à costa no local em que fica hoje Castell dell’Ovo, e em continuidade a cidade de Nápoles, para na versão romana ter sido Júpiter a transformar num vulcão fixado ao solo o centauro Vesúvio, que se tinha por ela enamorado.
Não se fica a saber ao certo se Sorrentino pretende falar da cidade de onde houve nome Nápoles, que é a sua por nascimento, ou da mulher, todas as mulheres convocadas na fulgurante estreia de uma superlativa Celeste Dalla Porta, por sinal nascida em Milão, eternamente jovem, mesmo se desdita por uma das míticas estrelas femininas do cinema italiano que no filme ocupa o seu lugar na velhice, a Stefania Sandrelli, nascida em Viareggio (Tuscania), de Divórcio à Italiana (1961), Seduzida e Abandonada (1964) e Alfredo, Alfredo (1972) de Pietro Germi, ou de Tão Amigos que Nós Éramos (1974) e O Terraço (1980) de Ettore Scolla, e de Partner (1968), O Conformista (1970) e já agora, num papel pequeno mas significativo como significativo o título é, Beleza Roubada (1996) de Bernardo Bertolucci, e até de Um Filme Falado (2003) de Manoel de Oliveira – o cinema figurado como a verdadeira mitologia do homem moderno.
Mas é bem no mar de Nápoles que o filme começa com um parto na água (ou não nos deva tentar, pelo menos em parte, entender a protagonista como uma sereia), apresentando-se logo desde início como um puzzle que não segue uma narrativa sempre clara, e até imprime no ecrã de vez em quando as datas como para anular uma espécie de tempo parado em que na verdadeira biografia de toda a gente, nem sempre a cronologia é clara. Ao espectador caberá saber como as peças se encaixam numa montagem mental que acompanha, talvez nem sempre a tempo, a montagem expedita do próprio filme.
No início é o deslumbramento, a beleza dos lugares, dos corpos, dos objectos, imagens soltas habilmente potenciadas pela directora de fotografia Daria D'Antonio, como se estivessem desgarradas, do lugar ou do tempo, que verdadeiramente nos seduzem, sem que para tanto haja ainda uma história. Como a presença de uma carruagem de Versailles surge talvez misteriosamente retirada da sua pertença original.
Depois vem o diálogo, e uma atenção em que o espectador não pode na realidade satisfazer-se, numa espécie de impermanência da vida que o filme paradoxalmente procura fixar. Este é o verdadeiro enigma. Do tempo. Ou da idade.
“Casavas comigo se eu tivesse menos quarenta anos?” pergunta o Comandante (Alphonso Santagata), uma espécie de caricatura de Achille Lauro, autarca de Nápoles entre 1952 e 1957. “Comandante, essa não é verdadeiramente a pergunta”, responde a jovem Parthenope. “A verdadeira pergunta é: desejavas-me se eu tivesse mais quarenta anos.”
Aí talvez o espectador possa começar a perceber que não há uma contradição absoluta entre a beleza que passa e a inteligência que a pode tentar transformar, e nessa forma sobreviver.
No princípio todos são jovens. Com Parthenope fogem para a vizinha Capri. E o desejo bate-se com a distância social ou familiar: Sandrino (Dario Aita), o filho da governanta, ou Raimondo (Daniele Rienzo ), o irmão torturado.
E há os estranhos que não admitem aproximar-se, como John Cheever (Gary Oldman), o escritor, também um personagem real, americano, alcoólico, (homos)sexualidade contida, e velho ("eu não quero roubar-lhe um só minuto da sua juventude"), ou o empresário que sobrevoa num helicóptero e persistentemente lhe manda um emissário.
“Não achas o desejo um mistério e o sexo o seu funeral?” pergunta Parthenope. Mas, acima de tudo, é a vida que como por magia sobrevive. E a morte que de repente entra com a solenidade de um cortejo ritual.
O filme parece desacelerar-se um pouco com as primeiras imagens de um funeral, e a sobreposição à desinfecção da cólera (ou uma óbvia semelhança com a chuva cinematográfica?).
E que vai ser de Parthenope no lado solar para lá do corpo, da praia, da sensualidade?
Talvez um curso na Universidade. O que é a antropologia? Devotto Marotta (Silvio Orlando), o professor: “a antropologia é a ciência que estuda os tipos e aspectos humanos numa perspetiva morfológica e psicológica.” É a resposta certa? “Não, é apenas a resposta que se pode dar. Lévi-Strauss, primeira fase.” Ou a citação apócrifa com ironia cinematográfica: “Um professor só precisa de estar uma classe mais adiantado que os alunos - Billy Wilder, antropólogo”.
Talvez o cinema. Um casting, mas antes um curso rápido de acting. Ser actriz, porquê? “Nos filmes antigos os actores têm sempre resposta pronta.”
Flora Malva (Isabella Ferrari), a actriz de rosto escondido, “obra de um cirurgião brasileiro”: “A vida devia ser assim. Em vez disso, não dormimos à noite. Ficamos a pensar na resposta certa a dar aos homens que nos ofenderam. As mulheres bonitas são ofendidas a toda a hora”. “Uma actriz tem o dever moral de ser curiosa, mesmo uma mulher, caso contrário, sucumbe”. “Nunca exibas as tuas fotografias. Mesmo a beleza, não contes com ela. Encanta nos primeiros dez minutos e irrita nos dez anos seguintes”.
Ou a agente Greta Cool (Luisa Ranieri): “Para me surpreender é preciso a bomba atómica”. E segue enfática: “Como vêem, o problema não é o facto de esta estátua ser feia. O problema são vocês, napolitanos. Estão deprimidos e não o sabem. Andam de braço dado com o horror e não o sabem. São apenas desleixados e folclóricos. Todos se riem de vocês e não se apercebem disso. Vangloriam-se de ser inteligentes. Mas o que é que ganham com toda essa esperteza? São pobres, cobardes, choramingas, atrasados. Roubam e agem mal. Estão sempre prontos a lançar a cruz sobre os outros. O invasor do momento, o político corrupto, o promotor imobiliário sem escrúpulos. Mas a desgraça são vocês. Um povo de miseráveis e orgulham-se de o ser. Nunca o conseguirão. Queridos napolitanos horríveis, vou voltar para o Norte, onde reina o belo silêncio, pois já não sou napolitana há muitos anos. Eu fui salva, mas vocês não. Vocês estão mortos”.
Mas antes é preciso conhecer a parte obscura, a Nápoles das ruelas pobre e violenta. Um trabalho de campo, sem limites ou ao mando ritualizado da Camorra? O sexo ao vivo como encenação pública, sem alma nem palavras, apenas triste. O lado lunar.
Depois os estudos académicos. Dirige-se ao professor Marotta: “Venho propor-lhe fazer uma tese sobre os aspectos antropológicos do suicídio”. “Não, escolha antes as fronteiras culturais do milagre.”
A morte e a vida com a indiferença encenada em anfiteatro escolar, a troco de uma carreira com sucesso e talvez, na melhor das hipóteses, um “beijo académico”. Uma carreira fora de portas sem regresso apetecido, um lugar em Trento, terra de concílios onde outrora talvez se tenha continuado de Constantinopla a discutir o sexo dos anjos.
E finalmente, cum laude, a entrevista com o cardeal Tesorone (Peppe Lanzetta) para tirar a limpo, para uma revista de antropologia, o que há sobre o milagre de San Gennaro, onde o seu sangue guardado como relíquia todos os anos se liquefaz quando não seja o espanto do súbito período menstrual de uma velha devota. Imponente na catedral, onde o milagre é o cabelo pintado de um homem que descobre que “Cristo ama demasiado e é dobrado pelo seu próprio amor. O amor é assim, não é controlável, por isso, de Jesus aos cantores e compositores, todos tentam dizer-nos como ultrapassá-lo. Ama-se demasiado ou pouco? É essa toda a diferença”. O que gostas numa mulher? “As costas, o resto é pornografia”. “No fim da vida só a ironia subsiste”.
É tudo para levar a sério? Talvez não. E daí? No tempo de Fellini, A Doce Vida (1960) ou Roma (1972), tudo podia ser sério e leve ao mesmo tempo. Agora é a Megalopolis (2024) de Coppola. A última palavra? Ou o silêncio?
Por banal que possa parecer e é, há também na cuidada banda sonora o My Way de Paul Anka que Frank Sinatra imortalizou.
Sorrentino continua a tentar. Como diz o cardeal, que ainda se atreve a esperar ser papa no próximo conclave: “Quando sabes tudo, morres cedo e sozinho. Procura o que não pode ser dito”.
Ou voltando ao professor Marotta numa definição que poderia ser a da antropologia, mas também a do próprio cinema: “O que é muito difícil é ver, porque é a última coisa que se aprende. Quando tudo o resto começa a faltar. O amor, a juventude, o desejo, a emoção, o prazer”. E o filho pode ser apenas a metáfora (já agora de gosto duvidoso), fruto escondido e disforme de uma permanência que mata ou apodrece?
No final Parthenome volta a casa e ela é Stefania Sandrelli aos 78 anos. Palmas para quê? No final a vida que não se fixa também pode ficar suspensa no ar, sem raízes nem lugar aonde voltar? E ainda há o futebol e o autocarro dos tifosi del Napoli.
Talvez se deva saber para perceber a imagem final, que Sorrentino tinha 16 anos quando os seus pais morreram ambos intoxicados pelo fumo da lareira na casa de férias da família, na montanha, e ele escapou ao mesmo destino porque tinha podido ficar sozinho em casa, pela primeira vez, para poder ver Diego Maradona no estádio do seu clube, história que inspirou aliás o seu anterior filme semi-autobiográfico, precisamente A Mão de Deus (2021) em homenagem ao golo ilegal do futebolista que nesse mesmo ano lhe valeu ter sido campeão mundial na Copa do México.
Comentários